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Autora de ‘Sex & the city’ critica continuação da série: ‘É um insulto’; entenda
13/03/2022 / 09:23
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Do outro lado da tela do computador, em seu apartamento no Upper East Side, em Manhattan, Candace Bushnell jura que não tinha se atentado à data. O repórter destacava o calendário: lá se vão 25 anos desde o lançamento (em agosto) de “Sex & the city”, o livro.

Compilado a partir das histórias publicadas em sua coluna nas páginas cor de salmão do defunto semanário New York Observer, protagonizadas por seu alter ego, Carrie Bradshaw, e por avatares de suas melhores amigas, todas brancas-solteiras-profissionais-liberais-com-dinheiro-no-bolso, ele estacionou na lista dos mais vendidos do New York Times.

Um ano depois, Carrie (Sarah Jessica Parker), Samantha (Kim Catrall), Miranda (Cynthia Nixon) e Charlotte (Kristin Davis) apareciam na série homônima, um dos maiores sucessos da história da TV por assinatura, seguida por filmes e spin offs. O mais recente deles, “And just like that”, passou de dezembro a fevereiro na HBO Max, com três das “meninas” cinquentonas (Catrall, por desavenças com Parker, não participou do projeto).

A nova série buscou incorporar à trama temas fundamentais do universo feminino contemporâneo: diversidade, gordofobia, gênero, raça. Boa parte da crítica torceu o nariz para o resultado, que percebeu ser forçado. Dona Candace também: “Eu e minhas amigas, as mesmas de uma vida inteira, não temos nada a ver com as mulheres de ‘And just like that’. Aliás, a sugestão, em si, de que teríamos, é quase um insulto. Apareço nos créditos, recebo minha parte por ‘personagens baseados na obra’, e está de bom tamanho pra mim”, dispara a autora premiada, de 63 anos, que lança agora no Brasil “Regras para ser uma boa garota” (Harper Collins), inspirado no #metoo e voltado para o público jovem.

Mês passado, para um perfil na New Yorker, a jornalista que começou a carreira escrevendo para revistas femininas nos “anos dourados das décadas de 1980 e 1990”, contou que há tempos deixou de se ver na Carrie de Sarah Jessica. Mais precisamente desde que a personagem “dormiu com Big (Chris Noth) quando ele era casado com outra mulher”. Bushnell foi uma das roteiristas das duas primeiras temporadas da atração original, mas depois não participou mais da produção.

Da nova série, com a ironia que lhe é característica, ela observa que Carrie pode ser definida como “uma mulher peculiar”, cujo centro de existência é “o casamento com um sujeito muito rico”. E se as dificuldades que la Bradshaw, Miranda e Charlotte têm para se adaptar aos “novos tempos” buscavam imprimir alguma leveza ou alívio cômico, o resultado, para Bushnell, foi um tremendo “mico”.

“Somos mais inteligentes e atualizadas. Só consigo passar algum pano para o que (o desenvolvedor Michael Patrick King e a produtora Sarah Jessica) fizeram, pois a TV tem lá sua própria lógica. Mas quando você me perguntou como as meninas mudaram minha vida, a resposta honesta é: em quase nada”, diz, se explicando: “‘Sex & the city’ alterou profundamente foi a vida da Sarah Jessica, que vai todo ano à gala do Met, né? Eu não virei capa da Vogue, não moro em uma mansão, e sigo escrevendo diariamente do meu apartamento, observando as mudanças de uma NY que teima em seguir relevante”.

“‘Sex & the city’ foi um ato feminista. Concordo que faltava diversidade e me incomoda a série ter inventado uma obsessão materialista das personagens. Mas fui pioneira em escrever sobre mulheres solteiras, urbanas e independentes (sexual e financeiramente). Que queriam usufruir liberdades oferecidas apenas aos homens. Antes de Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte, éramos, todas, àquele momento, invisíveis.”

Com o objetivo de dimensionar o que havia criado e de entender como poderia experimentar novas encarnações profissionais, para além do fenômeno, Bushnell conta que decidiu, quase que de imediato, ‘estudar’ os fãs de “Sex & the city”: “O que logo me chamou a atenção foi a obsessão de quem não apenas se identificava com os personagens, mas tinha certeza absoluta de que eram Carrie, Samantha, Charlotte ou Miranda. Que bom que eles adoram as quatro, mas o mundo é maior do que aquele cenário, do que aquela Nova York. Elas pareciam não se interessar sequer em ver as atrizes em outros papéis. O desespero delas, quando a Kim disse que não faria o spin off, me levou a reagir: ‘Gente, isso é só uma série’, apenas parem!”.

A autora de nove livros, contemplada com os prêmios Matrix e Albert Einstein, não se avexa, no entanto, a revelar sua faceta fã. Ela lê e relê Edith Wharton (1862-1937, “A era da inocência”), Flaubert (1821-1880, “Madame Bovary”) e Thackeray (1811-1863, “Vanity fair”). Namora, conta, a estrutura, os diálogos, e a construção dos personagens e cenários. Não por acaso, os nomes por ela citados são de mestres interessados em investigar as relações sociais de suas criaturas em um espaço geográfico muito bem definido: “Touché! Penso em mim como uma antropóloga da ficção. O que me interessa é escrever sobre um grupo específico de pessoas em determinada era em um lugar geograficamente delimitado. Esta é a melhor maneira de se estudar a natureza humana, como fiz ao mirar num microcosmo de Manhattan. As razões das tensões sociais seguem me interessando, é disso que quero falar”.

Bushnell diz que, durante muito tempo, a indústria do entretenimento aguardou dela “novos Sex & the city”. E que os fãs, ao alimentarem a mística em torno das “meninas”, se revelaram um paradoxo: ao mesmo tempo em que lhe garantiram fonte de renda perpétua (“neste sentido, desejo que ‘And just like that’ dure seis temporadas!”), também aumentaram a dificuldade de ela emplacar projetos distantes do universo de Carrie.

Um deles é “Regras para ser uma boa garota”. Lançado nos EUA em 2020, o livro gira em torno de tema que é caro a Bushnell: abuso sexual. Escrito a quatro mãos com Kate Cotugno, autora best-seller (“Top ten”) voltada para o público jovem, é um mix de ficção e manual para adolescentes identificarem situações de perigo e ferramentas disponíveis para evitá-las e combatê-las (incluindo a denúncia, quando com proteção; o apoio fundamental da sororidade; e iniciativas consagradas voltadas para a defesa de mulheres e crianças).

“Nunca vivi o abuso na pele, provavelmente porque estes nojentos priorizaram, no meu ambiente de trabalho, mulheres com seios fartos, e os meus foram sempre pequenos”, diz, para concluir: “Abuso sexual ocorre nas mais variadas formas e em todos os ambientes, inclusive o doméstico e o escolar. É minha obrigação tratar dele na minha escrita. E não me venham com essa de que o #metoo tornou mais mecânica a relação entre homens e mulheres. Ah, é? E daí? As mulheres que retrato e que, em sua maioria, como eu, focaram na carreira e não tiveram, ou não quiseram ter, filhos, são parte de um female power em que acredito cada vez mais. Juntas, podemos fazer muito contra os predadores. E não sinto pena deles: parem de pensar com seus pênis ou lidem com as consequências! Estamos em 2022”.

Outros temas centrais na atual agenda de Candace Bushnell — conservação ambiental, reuso de produtos, conforto acima da exclusividade — foram celebrados, ela conta, em um de seus primeiros retornos ao grand monde pós-pandêmico. Após dois anos de ausência, e uma temporada vivendo em sua Nova Inglaterra natal, a escritora marcou presença na mais recente New York Fashion Week.

Ela diz que gostou do que viu. E não vê contradição alguma em aparecer nestas páginas com peças, em sua maioria, presentes em seu armário desde a segunda metade da década de 1990. Mais uma viagem no tempo, que, no entanto, frisa, tem menos a ver com nostalgia do que com a mudança de percepção sobre o próprio mundo da moda, coadjuvante de luxo da série original.

“Tudo ficou mais casual na moda. Usamos hoje peças que jamais vestiríamos há 25 anos, e ainda não sei se isso é de todo bom ou ruim. Importante mesmo foi perceber que Nova York, muito menos energética do que a de ‘Sex & the city’, ainda cultua de verdade a beleza e a criatividade. E isso é fantástico, é o que vale na vida”, diz.

Informações: O Globo