Se você já viu duas mulheres negras se cruzando nas ruas e sorrindo uma para a outra, na maioria das vezes não é porque elas se conhecem ou já se viram em algum lugar.
A socióloga Vilma Reis, socióloga baiana especializada em Estudos Étnicos e Africanos, essa é uma prática que remonta a séculos atrás: “A gente aprendeu quando não era possível falar absolutamente nada – na brutalidade do tráfico transatlântico, muitas vezes foi somente com olhar que a gente construiu revoluções”.
O mesmo vale para os homens negros, que nesse caso se referem a essa troca em inglês como “nod”, um aceno ou o que pode ser chamado nas periferias de ‘salve’.
Vilma tem uma forma mais abrasileirada de se referir à questão e usa um termo pelo qual pessoas escravizadas que tinham vindo na mesma embarcação se tratavam:
“Eu uso a palavra malungo para falar desse acordo nosso sem poder falar, é um acordo malungo. Provavelmente o “The Nod” é o nosso Jeito Malungo de resolver a questão”, diz. “É o jeito da gente se olhar, todos nós carregamos códigos que fazem com que a gente se traduza.”
Essa troca de sorrisos pode ser cumplicidade, admiração ou uma identificação com símbolos comuns, como o crescimento recente do uso do cabelo natural.
Nas ruas de Londres, eu abordei mulheres negras que sorriram pra mim em uma tarde fria de dezembro para saber por que elas acham que isso acontece.
“Acho que primeiro nós reconhecemos os nossos. Nós temos todas essas questões em comum, então tendemos a cumprimentar”, disse Cara Lloid de 37 anos.
“Há essa identificação imediata, a gente se olha e se vê”, complementa Vilma.
Apesar de acontecer em qualquer lugar, existem certos espaços onde essa cumplicidade se intensifica.
“Se for um espaço majoritariamente negro, é mais difícil (acontecer) porque você não vai sair acenando para todas as outras mulheres, mas um espaço que tenha a presença negra de uma forma minoritária é quando elas visualizam uma a outra e realizam esse aceno”, diz a antropóloga Elisa Hipólito.
Cara Lloid concorda e diz que experimenta isso na pele: “Eu costumava trabalhar em uma área de maioria branca e, quando encontrávamos um dos nossos – e, quando eu digo um dos nossos, me refiro a alguém com quem eu me identifico -, nós éramos mais amigáveis uns com os outros”, conta.
Essa facilidade maior desse aceno ocorrer em lugares de maioria branca faz muitas brasileiras experimentarem essa cumplicidade pela primeira vez quando saem do país.
Segundo Vilma Reis, isso já acontecia quando ela era uma estudante em Viena, na Áustria, em 1993, mas também não deixa de ocorrer até hoje em espaços mais elitistas de São Paulo.
“Em Viena, as mulheres nigerianas que lá vivem olhavam pra mim e a gente se identificava. Mas eu também sinto essa energia em São Paulo, que é uma cidade das congolesas, das angolanas, das moçambicanas. Nesses espaços onde nós não somos majoritárias, elas olham para mim com muita cumplicidade. Porque o corpo fala, corpo é texto”, diz.
Um outro motivo muito citado nas ruas para motivar a troca de sorrisos é uma admiração estética – o que Patrícia Louisor diz que já estava na hora de acontecer:
“Acho ótimo porque, por anos, senão séculos, nós costumávamos lutar para sermos admiradas por pessoas brancas. E agora é uma época em que negros reconhecem negros, eu acho que é muito poderoso”, conta.
A antropóloga Elisa Hipólito concorda e diz que é comum uma mulher negra sorrir ao ver a outra usando seu cabelo na textura natural ou até mesmo trançado.
“Remonta a um pertencimento, a uma certa resistência. Principalmente se você almeja usar seu cabelo na textura natural e vê uma mulher com cabelo crespo; você sente um fortalecimento, um apoio pra fazer isso com você mesma”, explica.
Nem sempre, porém, a vivência compartilhada que gera essa troca de olhares e sorrisos nas ruas é positiva. Uma mulher negra sabe o que a outra passa. Elas recebem os menores salários, são as que mais sofrem violência doméstica e as que mais encontram dificuldades para se sair bem no mercado de trabalho.
No Brasil, por exemplo, são menos de 1% dos CEOs de empresas e no Reino Unido o número é ainda menor.
Para Elisa Hipólito, esse compartilhamento pela dor é igualmente potente:
“A Vilma Piedade, intelectual brasileira, fala do conceito de dororidade, que sobrepõe essa ideia da sororidade que a gente escuta tanto. É um termo para se pensar essa dor compartilhada entre mulheres negras, essa dor marcada pelo sistema patriarcal, mas também pelo racismo”, explica.
Para Vilma Reis, essa troca de olhares, sorrisos ou um salve tem a ver com a tentativa de resgate de uma união propositalmente desfeita séculos atrás.
“Eles separaram o nosso povo ao descermos na diáspora. Separaram quem era Fulani, Igbo, Hauçá e Iorubá. Mas o nosso povo se juntou. Diante de todas as impossibilidades a gente construiu uma linguagem no olhar e a possibilidade de empatia e acolhimento no olhar”, diz.
A socióloga afirma que algo tão simples como uma troca de sorrisos nas ruas aponta para um movimento de resgate da autoestima e de potência da população negra.
“É nós sabermos que estamos à margem, mas que a margem pode se juntar para criar uma nova centralidade.”
Por Jamille Bastos, da BBC News em Londres*