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A fé que amanhece cedo: notas de um domingo no Santuário de Nossa Senhora da Penha
25/11/2025 / 14:05 / Matheus Melo
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Entre devoção e graça, Romaria da Penha 2025 prepara caminhada de 600 mil fiéis – Fotos: Matheus Melo/F5 Online

Ainda era madrugada quando algo me arrancou da cama no domingo, 23 de novembro de 2025. Não sei se foi intuição, senso de dever ou aquele chamado silencioso que às vezes desperta repórteres. Só sei que saí de casa decidido: eu precisava entrevistar o Padre Francisco Azevedo, reitor do Santuário de Nossa Senhora da Penha, em João Pessoa.

O sol disputava espaço com as nuvens quando cheguei ao Santuário, na Praia da Penha. O mar, ali ao lado, respirava calmo, como quem também se preparava para o segundo dia da 262ª Festa da Penha. A igreja já estava tomada de romeiros. Enquanto pensava na entrevista, fui capturado pela missa das famílias, celebrada pelo Padre José Carlos, Vigário Forania Praia-Sul.

Romaria da Penha renova vínculos entre espiritualidade, cultura e comunidade

“Eu olho pra ela, ela olha pra mim, e a gente se entende”

Quando entrei, o padre contava uma história simples, mas de força devastadora. Falava de um homem humilde do interior, que não entendia latim, teologia, nem cantos de coro. Ele apenas sentava no canto da igreja, olhava para a imagem de Nossa Senhora e ficava ali, imóvel, em silêncio.

Padre, eu não digo nada. Eu olho pra ela, ela olha pra mim, e nós se entende”, dizia o homem, segundo o relato. “Eu olho pra ela, ela olha pra mim, e eu peço desculpas. Eu olho pra ela, ela olha pra mim e ela me ama.”

“Essa é a sabedoria dos pobres, dos mais simples, essa é a perfeita oração, aquele homem que não entendia nada de teologia, de filosofia, nenhuma ‘logia’ entendia de coração de mãe, ele entendia ser filho. Pode não ter sido um bom filho, como ele mesmo reconhece, mas reconhecia sem dúvida que no coração da mãe, havia um lugar pra ele, que nos olhos da mamãe havia um lugar para ele e o olhar dela não julgava, não tinha preconceito, não falava mal dele, não virava as costas, apenas olhava pra ele, olhava para o seu coração, um coração matuto, mas um coração temente a Deus, que reconhece as suas fraquezas, e admite que sem o olhar e o carinho da sua mãe, a vida dele não teria muito sentido. ‘Padre, eu não sei rezar. tudo que eu faço eu olho pra ela, e ela olha pra mim, e nós se entende”, enfatizava o Padre José Carlos.

O sermão foi ganhando corpo. Padre José Carlos falou de Davi, de perseguições, de paciência, de liderança que nasce do diálogo — não da imposição. Falou de política e humanidade sem jamais citar partidos. Falou de comunidade sem excluir ninguém. Falou de Cristo como rei não pelo poder, mas pelo gesto: Eu tive fome e você me deu de comer.”

Davi é o protótipo do que Jesus fez e está fazendo ainda hoje. Na festa de Cristo rei, cada um de nós também é chamado a se ver na missão de Davi. Jesus não quer cetro, nem coroa, nem prata, Jesus quer nossas boas obras. ‘Eu tive fome, você me deu de comer, eu tive sede e você matou minha sede, é assim que o reinado de Jesus vai ser sentido por nós e que nós possamos assim difundir pelo mundo inteiro. Mas o que o povo prefere? ficar brigando. Alguns brigam porque a minha bíblia é mais certa do que a sua, outros brigam porque eu amo Maria e você não. Outros inventam problemas dentro da comunidade, no grupo, no movimento, excluem a juventude, às vezes até excluem os idosos. Olha, na casa do Senhor há lugar para todos. Santa Teresa nos lembra que com paciência e oração a gente encontra o lugar da gente, porque Deus não esquece de ninguém. E a mãe de Deus não se esquece de nenhum de nós”, declarou.

O Santuário estava lotado. Gente em pé, famílias inteiras, romeiros vindos de todos os cantos, crianças nos ombros dos pais, idosos apoiados em bastões, enfermos físicos, espirituais, jovens, casais. Pela janela lateral, o mar brilhava. Ali dentro, outro mar: o humano, a comunidade.

Fé que atravessa séculos: Romaria da Penha 2025 espera 600 mil romeiros

Cristo Rei, Davi e o bolo solado

No curso da homilia, o padre lançou uma metáfora.

Às vezes somos como um bolo solado com glacê bonito. Por fora é lindo, mas por dentro falta gosto, falta substância. Às vezes é assim que vivemos a fé. Criamos fofocas, intrigas, desculpas… e perdemos o essencial.”

O sermão navegou entre teologia, literatura, vida cotidiana e exemplos vivos do povo. Falou sobre a importância da educação como ponte e fonte. Sobre empresas que caem por causa de uma fofoca. Sobre famílias que se desentendem por orgulho. Sobre a necessidade da paz. “Bem-aventurados os promovedores da paz.”

E então veio Ariano Suassuna.

A Compadecida e o Cristo negro

O padre relembrou O Auto da Compadecida, obra que moldou o imaginário popular sobre misericórdia. Citou o momento em que Maria — a Compadecida — intercede pelos errantes e arranca do próprio filho a salvação.

A igreja reagiu com sorrisos. Havia verdade ali. Havia povo ali.

E havia também um detalhe que me atravessou: o padre Zé Carlos é um homem negro. No filme, o Jesus que aparece é interpretado por um ator negro. Parecia uma cena dentro da outra, como se fé, arte e memória cultural se tocassem.

“Educação é a ponte e a fonte da nossa evolução e do nosso crescimento, como pessoa, como cidadão, e como filhos de Deus, e Deus quer que todos tenham vida, e vida em abundância, e educação é vida.”

Depois dos cânticos e de uma visita à capela ao lado do Santuário, assisti também à missa das 11h, com o Padre José Marcílio. E então, finalmente, encontrei o Reitor do Santuário, Padre Francisco Azevedo.

“Somos romeiros da esperança”

Perguntei ao Padre Francisco como ele define a importância cultural e espiritual da Romaria para João Pessoa e para a Paraíba.

Olha, tudo vem das promessas de Deus, no segmento de estarmos mais próximo dele, então o espírito maior da Romaria é agregar a espiritualidade mariana que nós somos chamados e somos guiados por ele, Nossa Senhora da Penha, ela tem um chamado muito forte, tanto que, na abertura esse ano, vocês perceberam a romaria das crianças aquela multidão de gente, como ela atrai, então, é a vontade de se aproximar de Deus através da virgem Maria”, afirmou.

O tema da festa deste ano resume esse movimento:

“Com a Senhora da Penha, somos todos romeiros da esperança e defensores da Ecologia.”

Lema: “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31).

É dentro do texto do livro do gênesis que a gente extraiu exatamente o sentido reflexivo de que nós somos e vivemos na esperança, porque a esperança de Deus nunca falha, como também, a questão da preservação da natureza, que foi a campanha da fraternidade, que nos convida a vivenciar a fraternidade da ecologia integral”, declarou Padre Francisco Azevedo.

Perguntei sobre o público esperado para a grande romaria, que ocorrerá no próximo dia 29.

Se Deus quiser, esperamos 600 mil pessoas. São 14 km, da Paróquia de Lourdes até aqui, ao Santuário da Penha.

262 anos de fé, história e cultura

A Romaria da Penha nasceu em 1763, fruto de uma promessa. O navegador português Sílvio Siqueira enfrentou uma tempestade no litoral da Paraíba e suplicou à Nossa Senhora da Penha pela vida da tripulação. Sobreviveram. E, em agradecimento, construíram uma capela no local do desembarque — a terceira no Brasil dedicada à santa.

Daquela pequena capela surgiram:

• a peregrinação anual,
• a devoção crescente,
• a tradição que atravessou séculos,
• e o reconhecimento oficial como Patrimônio Cultural Imaterial de João Pessoa e da Paraíba.

Hoje, a romaria reúne centenas de milhares de fiéis que caminham 14 quilômetros movidos por fé, gratidão, pedidos e promessas — mas também por pertencimento, identidade e memória coletiva. Alguns fieis chegam a subir e descer de pé a famosa escadaria da penha, que fica ao lado do Santuário, durante os dias da peregrinação.

A Romaria que acolhe todos

Se algo ficou claro nesse domingo é que a Romaria da Penha não pertence a um grupo, mas ao povo. É religiosa, mas também cultural. É tradicional, mas viva. É antiga, mas pulsa como se tivesse nascido ontem.

No sermão, o padre havia dito: “Na casa do Senhor há lugar para todos.”

E realmente havia.

Entre o mar da Praia da Penha e o mar humano dentro do Santuário, entendi que a Romaria é, acima de tudo, um encontro: com a fé, com a história, com o outro e consigo mesmo.

No próximo sábado, quando 600 mil romeiros andarem pela cidade, João Pessoa não será apenas palco de um evento. Será caminho, será promessa, será ponte.

E, como disse o humilde devoto da história, talvez diante da imagem da Mãe — apenas olhar seja suficiente.

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