ANA CAROLINA AMARAL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Cúpula do Clima convocada pelos EUA para o próximo dia 22 será um teste da nova configuração política global. Enquanto Joe Biden quer mostrar ao mundo que seu país pode liderar o rumo de uma economia mais sustentável, Jair Bolsonaro buscará convencer o americano de que o Brasil não será um empecilho.
Para se firmar como liderança global à frente do mais complexo desafio que a humanidade já encarou, Biden e seu enviado especial para o clima, John Kerry, precisam sinalizar que o compromisso americano será consistente e, para isso, integrado às relações comerciais. É aí que mora o maior risco para o governo Bolsonaro, que já enfrenta restrições nas relações comerciais com os europeus. Por outro lado, essa é também uma das poucas chances para que o governo revise sua política ambiental.
As conversas promovidas pelo governo Biden com o Brasil nos últimos dois meses chocaram ambientalistas brasileiros, que contavam com uma pressão crítica dos americanos e passaram a temer um “acordo secreto”, costurado apenas nos bastidores entre os dois países.
Na última sexta (16), senadores democratas enviaram uma carta para pedir ao presidente Biden que exija do Brasil o combate ao desmatamento. A condição pode não ser uma novidade na negociação entre os dois países, que sinaliza pequenas evoluções.
Segundo fontes ligadas ao governo brasileiro, Kerry teria oferecido ao Brasil uma remuneração, com verbas do setor privado, vinculada a um bom desempenho no combate ao desmatamento. A comunicação do governo americano não confirma a informação.
O modelo de pagamento após a comprovação de resultados é semelhante ao do Fundo Amazônia, que recebia doações da Alemanha e da Noruega. O mecanismo foi bloqueado no início do governo Bolsonaro, após uma tentativa feita pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) de alterar a gestão do fundo.
As críticas a um possível “acordo secreto” alertam para uma aparente disposição de ser convencido pela retórica do governo brasileiro. No entanto, a movimentação americana pode ter duas apostas.
A primeira seria conquistar uma mudança radical de postura do governo Bolsonaro sobre a Amazônia -o que consolidaria a imagem de Biden como líder global na pauta climática. A segunda, caso o Brasil não coopere, seria ganhar a justificativa para a criação de restrições nas relações entre os dois países.
No segundo cenário, Biden também se fortaleceria como “mocinho” ao se opor ao Brasil, que ficaria ainda mais isolado na figura de vilão do clima.
Em busca de se provar um quadro pragmático e viável para a segunda metade da gestão Bolsonaro, Salles tomou a frente do diálogo com os Estados Unidos -no último ano, o vice-presidente Hamilton Mourão era quem ocupava o papel de “relações-públicas” com os diplomatas europeus e investidores estrangeiros em conversas sobre o desmatamento na Amazônia.
Conforme revelado pela Folha, Salles chegou a mostrar em uma reunião com os americanos a imagem de um cachorro diante de uma máquina de frango assado, representando o apetite brasileiro pelos recursos financeiros prometidos por Biden para a Amazônia. Enquanto isso, o desmatamento na região bateu mais um recorde em março: foi 12% maior que no mesmo período de 2020 e o maior dos últimos seis anos para um mês de março, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Um dos compromissos que o Brasil deve apresentar na cúpula desta semana foi adiantado em uma carta enviada a Biden pelo presidente Jair Bolsonaro: a eliminação do desmatamento ilegal até 2030. Essa meta já havia sido apresentada pelo Brasil em 2015, na assinatura do Acordo de Paris, mas foi retirada pelo governo Bolsonaro da revisão da meta, no fim do ano passado.
Pelo Twitter, Kerry reagiu à carta de Bolsonaro dizendo que o “recomprometimento” de Bolsonaro com a meta é importante. “Esperamos ações imediatas e engajamento com as populações indígenas e a sociedade civil para que este anúncio possa gerar resultados tangíveis”, afirmou, equilibrando reconhecimento e cobrança.
Outro compromisso que o Brasil também deve anunciar na cúpula é a redução do desmatamento até o final de 2022, para 8.700 km2, que seria o nível médio registrado entre 2016 e 2020. No entanto, segundo o cálculo feito pelo Observatório do Clima, a média anual do período foi, na verdade, de 7.500 km2. Na prática, o governo estaria se comprometendo a encerrar o governo com um desmate 16% maior em relação ao início de 2019, quando chegou ao poder.
As incongruências nos cálculos do governo também aparecem na revisão da meta do Acordo de Paris. O Brasil é acusado por especialistas de “pedalada climática” e retrocesso na sua meta.
Embora tenha mantido o objetivo de redução de 43% das emissões de gases-estufa em 2030, com base nos valores emitidos em 2005, o Brasil mudou a linha de base de cálculo sobre as emissões daquele ano, que se mostraram superiores com o novo método.
Ao mudar a linha de base sem ajustar a meta, o Brasil eleva seu teto de emissões até o fim da década, podendo emitir até 400 milhões de toneladas de gases-estufa a mais do que o previsto no compromisso anterior.
Mas é a nova meta climática dos americanos, libertos recentemente do negacionismo de Trump, que gera a mais importante expectativa para a Cúpula do Clima. Ela pode apontar uma correção de rumo definitiva para uma economia global mais sustentável e de baixas emissões.
A correção das pedaladas nas metas climáticas representaria, ao menos em tese, a mínima chance de o Brasil atual pegar carona e garantir um lugar neste novo cenário global, ditado pelo clima.
A agenda climática tem se consolidado entre os principais eixos da geopolítica global desde a assinatura do Acordo de Paris, em 2015. Três anos antes, o Brasil apresentava o menor índice histórico de desmatamento na Amazônia ao mesmo tempo em que o PIB agropecuário na região batia recordes.
Ao provar que a produtividade era independente da devastação, o Brasil oferecia ao mundo um modelo de desenvolvimento mais sustentável e, com isso, reforçou seu lugar como protagonista nas negociações climáticas, tendo sido um dos principais articuladores do texto do Acordo de Paris. O documento prevê zerar as emissões globais de gases-estufa até a metade do século, trocando a matriz de energias fósseis por renováveis e conservando os ecossistemas que ajudam a regular o clima global, como é o caso da Amazônia.
Antes de Trump, que chegou a afirmar que a mudança climática seria uma farsa criada pela China, os Estados Unidos já enfrentavam a desconfiança internacional nessa pauta desde a era Bush, quando o mundo negociava o primeiro tratado climático -o Protocolo de Kyoto- sob resistência do então maior emissor global de gases-estufa, que não ratificou o documento. Ainda que hoje a China ocupe o topo do ranking de emissões globais, os Estados Unidos ainda respondem pela maior parcela dos gases jogados na atmosfera ao longo da história.
Com o prazo apertado para corrigir os rumos, Biden poderá fazê-lo ao lado ou por cima do Brasil de Bolsonaro.