LEONARDO SANCHEZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O caminho para lançar sua estreia na direção foi muito mais longo do que imaginou, mas Wagner Moura sente certo alívio por enfim poder levar “Marighella” aos cinemas. Marcado por adiamentos, o filme embarca numa turnê de pré-estreias pelo país nesta segunda-feira, e chega ao circuito no dia 4 de novembro.
Originalmente, a previsão era que ele chegasse ao público há dois anos, mas a pandemia e um imbróglio envolvendo a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, impossibilitaram o lançamento em ao menos duas ocasiões anteriores. Segundo Moura, “Marighella” foi censurado pelo órgão por ser uma biografia de Carlos Marighella, guerrilheiro comunista que lutou contra a ditadura militar.
“As negativas da Ancine para o lançamento e, depois, o arquivamento dos nossos pedidos não têm explicação. E isso veio numa época em que o Bolsonaro falava publicamente sobre filtragem na agência”, diz ele, em conversa por vídeo, na manhã seguinte à sua volta ao Brasil para a campanha de estreia do longa.
Com Seu Jorge na pele do guerrilheiro e escritor, “Marighella” também tem Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Humberto Carrão no elenco e foi exibido no Festival de Berlim de 2019, onde foi aplaudido. Nem assim ganhou força para chegar logo às salas brasileiras.
Moura acredita que a resistência que o filme encontrou, vinda também de parte do público, é sintomática dos tempos atuais, de ânimos políticos exaltados e um governo federal que com frequência ataca a cultura.
“Qualquer obra é a conjunção do que um realizador pensa e projeta com o tempo em que aquela obra é vista”, diz o ator-diretor. “A polêmica de ‘Marighella’ é muito menos sobre o Carlos Marighella e a luta armada do que sobre o governo Bolsonaro. É um filme sobre um personagem histórico, de seu tempo; Bolsonaro que é um personagem anacrônico.”
A experiência de assumir a direção pela primeira vez pode até ter sido mais desafiadora do que o normal, mas isso não abalou Moura. Ele, no entanto, ainda não tem outros projetos como diretor guardados, e deve se dedicar, nos próximos meses, a lançamentos e gravações de filmes e séries feitos no Brasil e nos Estados Unidos, como “The Gray Man”, de Anthony Russo e Joe Russo, irmãos por trás de “Vingadores: Ultimato”.
Folha – ‘Marighella’ estreia em novembro depois de uma série de adiamentos e de um imbróglio com a Ancine, que vetou datas anteriores de lançamento do filme. O que exatamente causou esse atraso?
Wagner Moura – Eu tenho uma visão muito clara sobre isso e não tenho a menor dúvida de que o filme foi censurado. As negativas da Ancine para o lançamento e, depois, o arquivamento dos nossos pedidos não têm explicação. E isso veio numa época em que o Bolsonaro falava publicamente sobre filtragem na agência, que filmes como “Bruna Surfistinha” eram inadmissíveis, que não ia dar dinheiro para financiar filmes LGBT.
Foi bem nessa época que os nossos pedidos de lançamento foram negados e, logo na sequência, os próprios filhos do Bolsonaro foram às redes sociais comemorar a negativa da Ancine.
É triste que um filme que tenha sido feito em 2017 até hoje não tenha estreado? É triste. Porém, hoje em dia, já está muito mais claro para os brasileiros a tragédia que é o governo Bolsonaro do que talvez em 2019, quando tentamos lançar “Marighella” pela primeira vez. Talvez, hoje, haja uma maior compreensão de que isso é um produto cultural brasileiro, que o fato de ser proibido, censurado, atacado pelo governo é um absurdo.
Folha – Existe, então, censura no Brasil hoje?
Wagner Moura – Não é censura como foi na época da ditadura, de que não vai passar e pronto, mas é uma censura que inviabiliza o lançamento de filmes por uma via burocrática. É triste, é só triste. Eu não tenho raiva, só tristeza.
Eu vi muitos casos semelhantes na cultura, do Crivella surfando nessa onda no Rio, proibindo um quadrinho que tinha personagens gays, a editais que promoviam a cultura LGBT que eram inexplicavelmente cancelados.
O que acontece é que a arte e a cultura são, por excelência -independentemente de como se posicionam os artistas-, inimigas do fascismo. Se você vai buscar na história, todos os regimes fascistas começam por atacar artistas.
Folha – Isso é sintomático da eleição de Bolsonaro ou vem de antes?
Wagner Moura – É lógico. Qualquer obra é a conjunção do que um realizador pensa e projeta com o tempo em que aquela obra é vista. Lá em Berlim eu disse isso, que se o filme tivesse estreado no governo Fernando Henrique Cardoso, a recepção seria uma. No governo Lula, outra. Isso é bonito, inclusive, porque é um mesmo filme, mas que depende do momento em que ele é apreciado.
A polêmica de “Marighella” é muito menos sobre o Carlos Marighella e a luta armada do que sobre o governo Bolsonaro. É um filme sobre um personagem histórico, de seu tempo; Bolsonaro é que é um personagem anacrônico. Que uma obra como essa tenha passado por tanta coisa -censura, gente entrando em site para dar nota ruim sem nunca ter visto, fake news, discussão sobre o tom da pele do Seu Jorge- diz muito mais sobre o tempo em que a gente está vivendo do que sobre o filme em si.
Folha – Como você avalia o governo Bolsonaro até aqui, para além da cultura?
Wagner Moura – Eu costumo dizer que a vitória do Bolsonaro nas eleições foi trágica, mas pedagógica. Esse cortejo de mediocridade que vem atrás dele mostra que o Bolsonaro não é um alien, não veio de Marte. Ele é um personagem profundamente conectado ao esgoto da história brasileira, que nos mostra que o Brasil não é só um país de originalidade, de beleza, de potência, de diversidade, de biodiversidade.
O favor que o Bolsonaro nos fez foi revelar esse outro Brasil, que estava camuflado; foi nos mostrar que nós também somos um país autoritário, violento, racista, de uma elite escrota. O Brasil é um país que nem é mais uma piada internacional. Quando os estrangeiros vêm falar com a gente, eles falam com pena. Agora nós temos que enfrentar isso.
E o trabalho do também ator, egresso da Globo, Mario Frias à frente da Secretaria Especial da Cultura?
Qualquer pessoa que aceite fazer parte desse governo já é, por excelência, anticultura, anti-direitos humanos, anti-meio ambiente, antiprogressismo. Você olha para qualquer um deles e vê que são pessoas medíocres, recalcadas.
Se as eleições fossem hoje, em quem você votaria?
Eu acho que o que está em jogo, hoje, é a democracia em si. O retrocesso foi tão grande que nós temos que olhar para a saúde da democracia, independentemente de quem seja o próximo presidente do Brasil. A gente tem que derrotar esse atraso. Okay, olhamos para isso e não gostamos. Foi um encontro com as nossas raízes mais profundas, mas aprendamos com isso.
Se a eleição fosse hoje, eu votaria no Lula. Eu reconheço ele, talvez, como o presidente mais importante da história do Brasil. Mas lá no primeiro mandato eu já reconhecia que nós temos que sair daqui para algo além. Do PT, a gente tem que buscar outra coisa, uma ideia de país que foi esboçada por esses governos, mas não suficientemente.
Por um tempo eu achei que a Marina Silva representava esse passo adiante, mas eu ainda procuro por esse alguém, seja na figura de um partido ou de um político. Há muitos políticos que eu respeito, jovens, que podem virar esse passo adiante, mas agora o momento é de reconstrução da democracia, de políticas públicas que beneficiem a maioria. Então se a eleição fosse hoje, eu acho que eu votaria no Lula.
Folha – Por que você escolheu uma figura tão controversa para biografar na sua estreia como diretor? Isso dificultou, de alguma forma, essa ida da frente das câmeras para os bastidores?
Wagner Moura – Eu pensava que ia começar dirigindo algo com três atores, um triângulo amoroso, mas aí saiu o livro do Mário Magalhães [“Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”], e eu queria muito que o filme acontecesse. Eu ia entrar como produtor e estávamos nos questionando quem a gente ia chamar para dirigir. Aí falaram que seria bom se fosse um baiano, se fosse alguém mais de esquerda. E eu falei “então eu acho que sou eu”, e pronto.
Eu comecei dirigindo um filme muito mais complexo para alguém que nunca tinha dirigido nada. É um filme com implicações políticas e históricas, grande, cheio de personagens, centrado numa figura maldita, que talvez cause mais polêmica hoje do que na própria época em que viveu –o que diz mais sobre a época de hoje do que sobre o Marighella.
Quando eu falei que ia dirigir meu primeiro filme, eu achava, numa certa empáfia, que eu era um artista popular e que as pessoas iam querer apostar no meu filme. Mas foi o contrário. A junção do Marighella com o meu nome, de um artista identificado com a esquerda, provocou uma rejeição muito grande e ninguém queria se envolver com o projeto. A gente teve uma dificuldade enorme, tivemos muito pouco dinheiro. No set de filmagem a gente recebeu ameaças, de gente dizendo que ia matar, que ia quebrar tudo.
Folha – ‘Marighella’, assim como ‘Tropa de Elite’, tem muitas cenas gráficas de violência e tortura. Isso não faz com que o filme caia num lugar de espetacularização?
Wagner Moura – Eu não acho que o meu filme espetaculariza a violência, não. É um filme cru, o filme inteiro tem uma linguagem muito realista. Eu queria enfrentar uma cena de tortura de forma realista, para mostrar como é -e, na verdade, é pior do que o que eu mostro. Eu queria mostrar a monstruosidade que é um ser humano torturar o outro, para causar mesmo um incômodo, mas eu não acho que a violência do filme é tarantinesca.
Eu aprendi muito com o Zé Padilha, filmando “Tropa de Elite”, que essa é uma linguagem que se aproxima do documental. A minha câmera se aproxima dos atores, ela está sempre na mão. Eu não filmei as cenas de ação pensando num espetáculo, o meu interesse nelas era ver o que o personagem está sentindo, o que acontece com ele no meio de um tiroteio, por exemplo. Eu quero estar junto deles, sentir o que estão sentindo, me conectar. E talvez isso seja muito mais violento do que essa espetacularização que Hollywood faz.
Folha – Você tem alguns projetos gravados em Hollywood guardados, inclusive.
Wagner Moura – Esse ano eu fiz dois projetos nos Estados Unidos. Um com os irmãos Russo, chamado “The Gray Man”, uma espécie de James Bond americano, e logo depois eu fiz uma série para o Apple TV+, “Shining Girls”, com a Elisabeth Moss, em que eu faço um jornalista -e gostei demais disso, porque eu me formei em jornalismo.
Os projetos para os quais eu estou mais animado, que eu ainda vou fazer, são um filme com o Kleber Mendonça Filho, no Recife, um projeto antigo que eu tenho com o Karim Aïnouz, que fala do avanço das igrejas neopentecostais, e eu estou produzindo uma série para a Disney sobre a Maria Bonita. Como diretor, eu não tenho nada adiante.
Folha – O que muda entre fazer um filme ou uma série aqui no Brasil e em Hollywood?
Wagner Moura – Nada, é a mesma coisa. Quando diz ação, é tudo igual. Já filmei na Jordânia, na Tailândia, na Colômbia, no Canadá, em tudo o que é lugar, e é tudo igual. As equipes têm as mesmas características, o tipo de câmera é o mesmo. O que muda é a escala, eles têm mais dinheiro.