“Se você parar agora e contar até 12, é o tempo que basta para haver um novo órfão por Covid-19 no mundo”. A frase é da cientista Susan Hillis, pesquisadora de doenças infecciosas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Mãe adotiva de 11 filhos, Hillis coassina um estudo publicado no fim de julho no periódico científico Lancet, onde afirma que a orfandade é uma epidemia escondida dentro da pandemia de Covid-19.
Somente no Brasil, mais de 113 mil menores de idade perderam o pai, a mãe ou ambos para a Covid-19 entre março de 2020 e abril de 2021. Se consideradas as crianças e adolescentes que tinham como principal cuidador os avós/avôs, esse número avança para 130 mil no país. No mundo inteiro, a cifra ultrapassa 1,5 milhão de órfãos.
“Nossos dados são muito claros em mostrar que o Brasil é o segundo país com maior número de órfãos, atrás apenas do México. Só posso dizer que existe um chamado urgente para que o país previna mortes e se prepare para proteger as crianças que vão precisar”, afirma Hillis.
Para além da tragédia emocional, muitas famílias perderam pais e mães que eram as principais fontes de renda da casa, expondo crianças e adolescentes a uma situação de vulnerabilidade financeira e social que vem junto com a orfandade. Para a cientista, é necessário que haja inclusão imediata desses menores em programas de transferência de renda.
“O tamanho do grupo de crianças em sofrimento é chocante e a velocidade com que ele aumenta é de tirar o fôlego. O extremo da situação fica claro quando você pensa que muitas vezes, em poucos dias ou semanas, a pessoa que contraiu Covid-19 está morta, o que deixa muito pouco tempo para que os familiares possam preparar esses filhos para o que é o futuro de uma vida sem mãe ou uma vida sem pai ou uma vida sem a avó que cuidava de você o tempo todo, todos os dias, que fazia a lição de casa com você, que lavava o seu cabelo, que estava ali para te ouvir quando você precisava de apoio psicossocial, que pagava suas mensalidades na escola. Então, estamos mesmo preocupados com essas crianças e, ao mesmo tempo, temos esperança porque aprendemos com pandemias anteriores o que funciona para ajudar e apoiar órfãos e crianças vulneráveis e suas famílias nessas circunstâncias”.
Em entrevista à BBC News Brasil, a pesquisadora destaca estratégias em diversos níveis de atuação para atenuar o sofrimento psíquico e social desses menores, contribuindo para um futuro onde os traumas de perder alguém tão próximo não os impeçam de viver plenamente.
Do pontos de vista das famílias, diz Hillis, apesar dos lockdowns e restrições de movimento que o mundo todo tem experimentado, é preciso usar o momento para fortalecer o relacionamento com parentes que moram perto, e até mesmo aqueles que não moram perto, por meio de plataformas de videochamadas, porque são esses parentes que provavelmente terão que intervir e ajudar caso o pai ou o avô cuidador morra. “E, especialmente para uma doença que mata tão rapidamente, eles precisam estar a postos”.
Já em relação à governos e sociedade civil, a pesquisadora discorre sobre três estratégias onde todos os níveis administrativos podem se engajar.
“Em primeiro lugar, precisamos prevenir as mortes desses pais, e certamente a essa altura sabemos como fazer isso. É preciso acelerar e garantir a equidade da distribuição das vacinas e enquanto isso não acontece e a imunização segue indisponível em muitos países, temos que seguir adotando aquelas medidas de saúde pública: uso de máscara, distanciamento social, higiene apropriada das mãos. Isso é essencial para impedir que esses pais contraiam a doença e morram”.
A segunda estratégia é a preparação para a perda.
“Há evidências claras de que crianças que crescem em orfanatos têm um risco aumentado de atrasos cognitivos permanentes. Isso está longe de ser o melhor que podemos fazer, como sociedade, por uma criança órfã”, afirma.
Segundo ela, é necessário preparar parentes das famílias desses jovens ou mesmo formar rapidamente famílias substitutas e adotivas que possam dar um lar para as crianças que precisam e precisarão deles.
“É preciso olhar para a possibilidade de famílias alternativas. Obviamente, isso deve sempre começar com os parentes e, quando isso não for possível, é preciso um lar substituto seguro e amoroso”, argumenta.
A terceira estratégia é proteção social, já que crianças e adolescentes que crescem sem uma mãe ou um pai para zelar por elas correm maior risco de exposição à violência sexual, física e emocional.
“Fica claro que precisamos trabalhar juntos para garantir que os pais ou cuidadores adotivos possam construir uma coesão familiar, que essas crianças sigam tendo oportunidades de permanecer na escola e precisamos assegurar seu fortalecimento econômico, inscrevendo-os em programas de transferência de renda, já que órfãos também acabam em situações econômicas altamente vulneráveis quando quem falece de Covid-19 é também o chefe de família”.
No Congresso brasileiro, tramitam diversos projetos de lei para beneficiar com assistência social órfãos da Covid-19. O governo federal já anunciou que planeja pagar uma pensão para órfãos já inscritos em programas sociais, algo em torno de 68 mil menores de idade, segundo estimativas. Mas nenhuma dessas propostas de auxílio saiu do papel ainda.
“A cada 12 segundos, uma criança ao redor do mundo perde os pais ou um dos avós cuidadores por covid-19. Pense nisso: se você parar agora e contar até 12, é o tempo que basta para haver um novo órfão. Dito de outra forma, a cada dois adultos que morrem pela pandemia no mundo, uma criança é deixada para trás lamentando a perda de sua mãe ou de seu pai ou avó ou avô que o criava. Isso traduz a urgência de agirmos todos juntos e agora”
No dia 19 de julho, durante uma reunião virtual do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste), governadores da região aprovaram um programa de auxílio social para filhos que perderam seus pais para a Covid-19. O projeto intitulado ‘Nordeste Acolhe’ prevê o pagamento de R$ 500 para os órfãos da Covid-19.
De acordo com o governador da Paraíba, João Azevêdo, a iniciativa demonstra a preocupação do poder público em relação aos futuros adultos.
“A pandemia nos trouxe perdas irreparáveis e, infelizmente, muitas crianças e adolescentes perderam seus pais para o coronavírus e nós temos o compromisso social de prestar essa assistência e ajudar a eles e seus familiares, garantindo direitos. Esse é um esforço conjunto dos governadores da nossa região para amparar quem necessita do nosso cuidado e atenção”, afirmou Azevêdo.
Wellington Dias, governador do Piauí e presidente do Consórcio Nordeste, explica que cada estado deve encaminhar o programa para as assembleias legislativas a partir de agosto.
“É claro que nós vamos cuidar na área social de forma mais ampla, buscando a geração de emprego e renda, as condições de manutenção do auxílio emergencial financeiro, de ampliação de investimentos, mas há uma situação particular e especial que atingiu famílias”, explica o governador.
Da Redação com BBC News Brasil