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Busca por padrão estético inalcançável pressiona homens gays com efeitos na saúde física e mental
14/10/2025 / 16:08
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Desejo de validação contribui para comportamento conhecido como 'síndrome do bom menino'
O engenheiro de software Helison Goulart voltou à malhação após se recuperar de uma cirurgia na coxa direita – Crédito: Karime Xavier/Folhapress

Helison Goulart, 31, teve um preparo rígido para uma viagem à Europa. Fez reposição hormonal, musculação e cuidou da alimentação para estar com o corpo “ideal” nos passeios e nas fotos. Mas um detalhe ainda o incomodava. Era uma veia mais saltada que o normal na perna esquerda. Faltando três meses para embarcar, decidiu agendar uma cirurgia para retirá-la.

“Eu ia operar numa segunda-feira e teria que ficar um mês sem malhar a perna. Na sexta-feira, fui fazer meu último treino e quis dar meu sangue. Foi aí que eu rasguei a minha coxa no meio.”

O excesso de peso acabou rompendo o vasto lateral (maior músculo do quadríceps) da perna direita. Com isso, o tendão que liga o joelho à coxa ficou sobrecarregado e se rompeu também. No lugar da cirurgia estética com um mês de recuperação, Helison precisou passar por uma cirurgia de emergência considerada agressiva e três meses de reabilitação.

“Não tem como você ser perfeito, e é importante se lembrar disso todos os dias”, afirma o dermatologista Thiago Cunha, que atua na clínica de saúde mental e estética Espaço Arquétipo.

Segundo o médico, quando as pessoas não tinham tanta tecnologia e exposição constante a câmeras, a percepção da própria imagem era menos intensa. E o processo natural de envelhecimento também é algo com que é preciso lidar.

“As mudanças vão acontecer. Com o tempo, você vai notar essas transformações na sua pele e ao se olhar no espelho. É impossível evitar isso. Mas é possível se relacionar com o corpo de uma forma saudável, sem buscar a perfeição inatingível”, diz.

Helison conta que, depois da cirurgia, perdeu todo o progresso físico que havia conquistado. Ele emagreceu dez quilos, viu seu corpo “definhar” e ainda se sentia pressionado pela viagem que já estava marcada. Mas seguiu uma recuperação rigorosa e conseguiu viajar como planejado.

Hoje ele continua no processo de reabilitação e quer tentar igualar os músculos da coxa para voltar ao mesmo padrão de antes. A cirurgia da veia foi remarcada para o ano que vem.

“Vai ser depois do Carnaval. Meu objetivo agora é deixar as pernas iguais até lá. É aquela história, ‘pretty hurts'”, brinca, citando a música da cantora Beyoncé que fala que a busca pela beleza pode acabar machucando.

Na canção de 2014, Beyoncé critica justamente a pressão por padrões estéticos difíceis de alcançar, que acabam trazendo dor, humilhação e insegurança, uma realidade comum entre mulheres, mas que também ecoa na experiência da população LGBTQIA+, principalmente entre homens gays.

João Jacobs, psicólogo LGBT+ afirmativo, explica que essa pressão estética tem raízes que remontam à infância e a uma “heterossexualidade compulsória”, processo que muitos da comunidade enfrentaram desde cedo.

São situações cotidianas que, segundo o psicólogo, reforçam a ideia de que a pessoa deve se encaixar em um padrão heteronormativo. Um exemplo está na dança de festa junina de uma escola, quando o menino gay é obrigado a dançar com uma menina, ou nas celebrações de aniversário, em que o nome anunciado no “com quem será” é o de uma menina.

“Meninos heterossexuais que gostam de futebol são socialmente validados dentro desse estereótipo de masculinidade. Qualquer criança que foge dessas expectativas fica sujeita a agressões, exclusões e preconceitos”, diz Jacobs.

Diante dessa sensação de não pertencimento e inadequação, muitos acabam desenvolvendo um mecanismo para conquistar valor e aceitação, um comportamento conhecido como “síndrome do bom menino” entre profissionais de psicologia e psiquiatria.

“Eles compensam isso [sentimento de inadequação] demonstrando mais afeto, cumprindo suas responsabilidades de forma rigorosa ou sendo o melhor da turma. Com isso, começam a medir seu valor pessoal a partir da imagem que projetam para os outros, criando mecanismos de compensação emocionais que buscam reconhecimento externo”, afirma o psicólogo.

“Essa ‘síndrome do bom menino’ vai aparecer mais tarde como uma pressão estética, quando muitos homens gays sentem que precisam corresponder a certos padrões para serem aceitos socialmente, como [atender] o ideal do homem gay másculo”, acrescenta Jacobs.

A tentativa de corresponder a padrões externos pode se intensificar na vida adulta.

Os especialistas lembram que para muitos homens gays o início da vida sexual é marcado pela ausência de afeto e experiências amorosas, e a pornografia acaba sendo o primeiro contato —o que ajuda a reforçar estereótipos pouco realistas.

“Com as minhas inseguranças e tendência de comparação, acabei desenvolvendo diversos transtornos alimentares”, diz o jornalista Luiz Filho, 32. Ele conta que ainda estava no ensino médio quando desenvolveu anorexia e bulimia, condições agravadas pelo consumo de álcool.

À medida que se envolvia mais com a comunidade LGBT, a cobrança estética crescia, ele afirma. “A gente começa a frequentar lugares e festas onde as pessoas ficam sem camisa o tempo todo. Isso acaba virando algo que te consome.”

Luiz diz que a pressão estética chega a “triplicar” quando se busca relacionamentos. Ele conta que, embora parceiros elogiassem seu corpo, frequentemente acrescentavam que ele “ficaria melhor” se treinasse mais. Também diz ter enfrentado etarismo em aplicativos de encontros e nas redes sociais, onde memes rotulam a fase dos 30 anos como a “terceira idade do homem gay”, com apelidos como “gay cacura” e “maricona”.

“A gente ainda vive rodeado por memes, gírias e brincadeiras que muitas vezes são bullying e etarismo mascarados”, afirma.

O publicitário Paulo Roberto, 29, avalia que a transformação corporal que teve na adolescência, quando passou de 105 para 70 quilos, se refletiu positivamente em diversos aspectos da vida. Ele conta que se tornou “viciado” em cuidar do corpo, adotando uma rotina constante de exercícios físicos e procedimentos estéticos pontuais para prevenção de flacidez, por exemplo.

“Depois que eu emagreci, percebi que as pessoas começaram a me notar mais, a olhar mais para mim, especialmente na questão amorosa, se interessando por mim. Parece que ficou mais fácil viver”, diz.

O psicólogo João Jacobs lembra, contudo, que esse desejo constante por validação de corpos considerados padrão intensifica a pressão e promove comparações que prejudicam a saúde mental.

“Todo esse contexto pode levar a isolamento social, ansiedade, depressão, transtornos alimentares e dismorfia corporal e contribui para a alta prevalência de adoecimento psíquico e suicídio na população LGBT”, conclui.

Com informações da Folha de São Paulo