Cidades brasileiras com prefeitas tem 44% menos mortes por Covid-19 e 30% menos internações se comparadas a municípios chefiados por homens, é o que revela uma pesquisa desenvolvida por quatro economistas brasileiros. A motivação para o estudo surgiu após os autores observarem o desempenho notável de lideranças femininas à frente da pandemia em lugares como Bangladesh, Taiwan e Nova Zelândia. Neste último, a gestão da primeira-ministra Jacinda Arden levou o país a se tornar referência no combate à Covid, com um total de 26 mortes em decorrência da doença.
“A gente decidiu investigar se ter uma mulher na gestão da crise sanitária poderia levar a uma diferença das políticas públicas adotadas e causar desfechos melhores do que ter um homem nessa mesma função”, explica o economista Raphael Bruce, do Insper.
Junto com colegas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Barcelona, Bruce assina o recém-publicado “Sob pressão: a liderança das mulheres durante a crise da covid-19”. A pesquisa ainda não passou por revisão de outros cientistas mas já oferece a primeira evidência de que ter mulheres no poder durante uma crise sanitária pode ajudar a salvar mais vidas.
A conclusão mostra que cidades com prefeita tiveram, em média, 25,5 mortes por 100 mil habitantes a menos do que aqueles em que os chefes do Executivo municipal eram homens — uma diferença de 43,7% na mortalidade.
Em relação às hospitalizações, os registros revelam uma redução média de 30,4% em internações por 100 mil habitantes nos municípios com prefeitas em relação ao mesmo dado de cidades com prefeitos.
“É preciso sempre lembrar que esses dados são válidos para esses municípios pequenos e médios que foram analisados, mas fizemos esse cálculo para mostrar o tamanho da relevância do fenômeno quando a gente pensa em definição de políticas públicas”, explica o pesquisador Alexsandros Cavgias, da Universidade de Barcelona.
Para conceber o estudo, os economistas tiveram que chegar o mais próximo possível da reprodução das condições de um experimento controlado, usando os mais de 5.000 municípios do Brasil como uma espécie de laboratório.
Primeiro, os pesquisadores selecionaram apenas os 1.222 municípios que, nas eleições de 2016, tiveram eleição à prefeitura realizada em turno único e em que o primeiro e o segundo colocados fossem de gênero diferente. Assim, limitaram a análise a municípios de até 200 mil habitantes.
Depois refinaram ainda mais a amostra, de modo a considerar apenas aqueles em que a corrida eleitoral foi acirrada — e a margem de vitória menor do que 10% do número de votos para a candidata ou para o candidato —, algo que ocorreu em cerca de 700 localidades.
Dessa forma, os economistas se concentraram nesse grupo de pequenos e médios municípios, comparáveis entre si econômica e demograficamente, em que a chance de haver um homem ou uma mulher na cadeira de prefeito era praticamente aleatória, quase um acaso.
O passo seguinte foi verificar os dados de mortes e internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) de cada um desses 700 municípios, em 2020, no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do Ministério da Saúde.
Como a distribuição e aplicação de testes para o novo coronavírus variou muito pelo Brasil, os dados de SRAG têm sido adotados como forma de driblar eventuais distorções por subnotificação de casos e óbitos de Covid-19.
Além das 44% menos mortes e 30% menos internações, a projeção do estudo mostra que se metade das 5.568 cidades brasileiras fossem comandadas por mulheres, cerca de 75 mil vidas poderiam ter sido salvas durante a pandemia (15% menos mortes do que o total acumulado, de mais de 540 mil).
Atualmente, menos de 13% das prefeituras do Brasil são comandadas por mulheres.
Como ainda em 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou que os municípios teriam autonomia para estabelecer medidas locais, uma das respostas para o protagonismo feminino poderia estar em como essas mulheres guiaram suas respectivas populações em relação às medidas não farmacológicas de combate à Covid.
No caso das máscaras, o número de prefeitas que determinou seu uso obrigatório superou em oito pontos percentuais o dos pares homens. Na obrigatoriedade de testes para entrar na cidade, mulheres superaram homens em 14 pontos percentuais. E na proibição de aglomeração, em cinco e meio pontos percentuais.
De modo geral, municípios com mulheres no comando adotaram em uma frequência 10% maior as medidas não farmacológicas de combate à pandemia.
Os pesquisadores analisaram ainda traços que pudessem explicar os resultados das gestões masculinas e femininas. Em relação a idade menor ou maior de homens e mulheres no cargo, não houve diferença significativa na comparação dos perfis.
Outra hipótese era de que a diferença fosse resultado de um perfil ideológico das mulheres, mais contrárias ao posicionamento negacionista do presidente Bolsonaro. “Mas a verdade é que quando olhamos para os dados sobre posicionamento político-partidário, as mulheres prefeitas tendiam a ser até um pouco mais conservadoras do que seus pares homens”, comenta Raphael Bruce, do Insper.
Embora as mulheres prefeitas tivessem, em média, escolaridade mais alta do que os homens prefeitos, a pesquisa mostrou que a adoção de medidas mais rígidas e a redução de mortes e internações não variava conforme o nível educacional, o que também levou ao descarte do fator como possível explicação.
O levantamento também analisou se as prefeitas poderiam ser, com mais frequência, profissionais da saúde, o que poderia impactar suas decisões políticas nessa área. Isso também não se comprovou verdadeiro. Tampouco as prefeitas tomaram medidas nos anos anteriores que as tivessem deixado em melhor situação que os governantes homens quando a pandemia chegasse, como o aumento de leitos ou de investimento na saúde.
“A verdade é que por enquanto apenas sabemos o que não causa a diferença, mas não conseguimos determinar o que está por trás do fenômeno”, afirma Bruce.
De acordo com o economista Sergio Firpo, do Insper, que leu o artigo, o mérito da pesquisa está em estabelecer a causalidade entre haver mulheres no poder e haver menos mortes naquela cidade em decorrência da pandemia — o que pode pautar a ação de eleitores e agremiações políticas no futuro.
“É uma falha não ter uma explicação para o fenômeno no trabalho. Mas mesmo que não saibamos o que provoca essa diferença, seria interessante que os partidos e os eleitores observassem esse tipo de coisa para escolher suas apostas, seus candidatos. O ponto é que existem diferenças na gestão entre homens e mulheres e isso é estratégico”, diz Firpo.
Para Jessica Gagete-Miranda, pesquisadora de políticas públicas da Università’ degli Studi di Milano Bicocca, na Itália, que leu o estudo a pedido da BBC News Brasil, a explicação para o fenômeno pode estar em uma característica frequentemente associada ao gênero feminino na literatura científica: a maior aversão ao risco.
“Já existem pesquisas mostrando que mulheres, de forma geral, aderiram mais a medidas não farmacológicas de combate à covid-19, como distanciamento social e uso de máscara. Se mulheres de forma geral fazem isso, mulheres prefeitas também devem fazer e essas últimas têm poder político para exigir que a população também o faça”, destaca Gagete-Miranda.
“Talvez as mulheres prefeitas acabem tomando melhores decisões sob pressão porque já enfrentam mais pressão e desafios adicionais na carreira política. Mas esse é um aspecto não observável da realidade”, sugere ainda o economista Raphael Bruce, ao analisar a desigualdade a que mulheres políticas são submetidas tanto na vida pessoal quanto na carreira de uma forma geral.
Da Redação com BBC Brasil