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Candidato Influencer: quando seu marqueteiro confunde campanha com collab de TikTok
08/12/2025 / 14:34
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Eleições em modo creator: como campanhas viram conteúdo e esquecem política
A ilusão do engajamento: likes sobem, votos não

Do like ao voto, do engajamento ao zero vírgula alguma coisa: um estudo de caso sobre gente que acreditou no próprio hype

Existe uma cena clássica das últimas campanhas eleitorais: o comitê está em clima de final de Copa. O marqueteiro entra na sala, laptop embaixo do braço, e solta com a segurança de quem descobriu a cura do escorbuto:

– Bateu cem mil visualizações no Reels.

Silêncio respeitoso. Assessores se entreolham, alguns quase batem palma. O candidato, que até semana passada achava que TikTok era nome de remédio para tosse, pergunta, tímido:

– E isso dá quanto em voto?

Silêncio de novo. Dessa vez, constrangedor.

Porque aí entra a parte chata da história: a aritmética. Cem mil visualizações não significam cem mil pessoas, muito menos cem mil eleitores do seu município, muito menos cem mil gente disposta a sair de casa no domingo de chuva para enfrentar fila, mesário mal-humorado e urna que insiste em apitar quando você digita “1” mais devagar.

Mas na cabeça do marqueteiro-influencer, o raciocínio é simples: view = relevância relevância = narrativa narrativa = vitória

A parte intermediária, que envolve legenda, zona eleitoral, liderança comunitária, reunião de sala, sindicato, igreja, associação de bairro, ele pula porque… não dá like.

O DIA EM QUE A CAMPANHA VIROU PRODUTORA DE CONTEÚDO

Campanha eleitoral, hoje, muitas vezes nasce assim: antes de qualquer conversa sobre proposta, território, diagnóstico, vem o planejamento de conteúdo.

– Vamos fazer dancinha? – Vamos humanizar o candidato? – Vamos mostrar os bastidores? – Vamos fazer react de vídeo polêmico?

Tem roteiro para tudo, menos para a pergunta básica: “Por que alguém, em sã consciência, votaria nesse sujeito e não no outro?”

O candidato, coitado, embarca. Ele acha que está “moderno”. Na prática, virou figurante da própria campanha. Quem disputa protagonismo não é ele. É o algoritmo.

Tem vídeo para combater “fake news”, mas ninguém sabe explicar, numa frase, o que ele defende. Tem thread de Twitter com “posicionamento forte”, mas, na rua, o cabo eleitoral continua distribuindo santinho com slogan genérico: “Por você e pela nossa gente”.

Tradução: campanha hi-tech por fora, política do século passado por dentro. Um tipo sofisticado de esquizofrenia midiática.

ENGAJAMENTO NÃO VOTA, E-MOJI NÃO CONFIRMA NA URNA

Existe uma diferença brutal entre gostar de um vídeo e depositar um voto. Curtir é gesto impulsivo, quase reflexo. Votar é ato chato, burocrático, com fila, documento e paciência.

Seu marqueteiro pode até não ter culpa de confundir uma coisa com a outra – o mercado ensinou ele assim. Clientes querem print de resultado:

  • “Olha quantas pessoas alcançadas.”
  • “Olha quantos compartilhamentos.”
  • “Olha esse comentário: ‘Se eu votasse aí, votaria em você’.”

A palavra-chave é “se”. “Se eu morasse aí.” “Se eu votasse na sua cidade.” “Se política prestasse.”

Mas isso não entra em relatório. O que entra é gráfico com seta subindo e legenda motivacional: “A mensagem está chegando”.

Chegando onde, exatamente? No eleitorado alvo ou na bolha de sempre? No jovem que não fez título, no influencer de outra cidade, no jornalista que acompanha tudo, no militante do adversário que precisa monitorar você… todos contam como “alcance”.

A urna, estranhamente, não aceita print de dashboard.

O CANDIDATO PERFORMANCE E O ELEITOR DE CARNE E OSSO

Tem um tipo específico de figura que a era digital criou: o candidato-performance. Ele é ótimo em vídeo curto:

  • fala bem,
  • tem tirada rápida,
  • reage a polêmica com ironia,
  • sabe usar trend sonora.

No feed, parece gigante. Na rua, ninguém sabe quem é.

Enquanto isso, aquele outro candidato, meio sem graça, que fala travando na câmera, aparece mal no Instagram, mas tem o que interessa:

  • tempo de serviço na base,
  • relação orgânica com comunidade,
  • gente que defende o nome dele quando ele não está presente.

O candidato-performance ganha a guerra de comentário. O outro ganha a guerra de urna.

A surpresa só existe para quem achou que campanha é reality show e esqueceu da parte “representação política”.

QUANDO O MARQUETEIRO VIRA GURU ESPIRITUAL DO CANDIDATO

A situação fica dramática quando o marqueteiro não é apenas fornecedor, mas oráculo. Tudo passa pelo filtro da “linguagem da internet”.

– Esse discurso está muito pesado, vamos deixar mais leve. – Esse tema não engaja, o povo não quer ver isso. – Vamos falar mais de motivação, menos de proposta, tá?

De repente, temas como saneamento básico, creche, transporte, tarifa, salário do servidor, orçamento público… tudo é considerado “difícil de explicar em 30 segundos”. Ou seja: aquilo que muda a vida do eleitor sobra no corte. O que fica é: – bastidor no carro, – vídeo abraçando cachorro, – selfie na feira, – frase vazia em tom emocionado.

Evidente que imagem importa. Ninguém está defendendo candidato-caverna. Mas quando a estética engole o conteúdo todo, o que você tem não é campanha. É collab. O candidato virou “creator convidado” no próprio perfil.

A ESTRUTURA QUE NÃO APARECE NO FEED (E DECIDE A ELEIÇÃO)

Campanha competitiva ainda é, chata e teimosamente, trabalho de estrutura. Você pode ter menos view que o adversário, mas se tiver mais:

  • coordenador de região que conhece cada liderança de bairro;
  • militância que vai pra rua sem diária de influencer;
  • grupo de WhatsApp segmentado por comunidade, com quem realmente vota ali;
  • reunião pequena, mas constante, em vez de um grande ato fotogênico que não se traduz em compromisso;

a chance de ganhar aumenta.

O problema é que isso não rende vídeo com trilha épica. Rende, no máximo, foto tremida de reunião em sala de casa com sofá estampado, filtro de luz horrível e bolo de fubá na mesa.

Só que essa foto, sem glamour, costuma representar de 20 a 30 votos reais. Já o vídeo com 300 mil views pode representar exatamente zero, se só circulou entre pessoas que não podem ou não vão votar em você.

Mas tente explicar isso para quem acha que campanha é case para portfólio.

O CASE CLÁSSICO DO “EXPLODIMOS NA INTERNET, MIAMOS NA URNA”

Os bastidores das últimas eleições estão cheios de histórias assim:

– fulano estava estourado no digital; – em toda pesquisa espontânea, quase não aparecia; – no final, fez mil e poucos votos.

O contrário também existe: – fulano mal tinha rede social ativa; – parecia ultrapassado; – foi eleito porque, na hora do vamos ver, tinha nome falado na boca certa, não no story certo.

Não é uma defesa do atraso, é uma defesa da proporção.

Quem toma decisão só olhando métrica de engajamento comete o erro clássico de confundir aplauso com adesão. Aplauso é momentâneo, impulsivo, disperso. Adesão é aquela conversa desconfortável, olho no olho, em que alguém pergunta: “Tá bom, mas você banca isso mesmo? Vai votar como? Vai mexer em quê?”

E isso não cabe num vídeo de 15 segundos com música do momento.

OK, ENTÃO JOGA O CELULAR FORA E VIRA PANFLETEIRO?

Calma. Não é isso.

O problema não é usar TikTok, Reels, shorts ou o que vier depois. O problema é tratar isso como eixo da estratégia, e não como extensão.

Ferramentas digitais bem usadas podem:

  • amplificar mensagem para quem já está minimamente interessado;
  • explicar, com didática visual, temas complexos;
  • registrar compromisso em vídeo (o que ajuda a cobrar depois);
  • dar escala a um discurso que nasce na rua, não no storyboard.

Mas isso exige uma inversão de lógica: em vez de partir da trend para inventar uma mensagem, você parte da mensagem – aquela coisa antiquada chamada “projeto político” – e vê qual formato digital ajuda a colocá-la na mão certa.

Influencer pensa em retenção, watch time, alcance. Candidato sério precisa pensar em:

  • densidade do voto (onde ele está concentrado);
  • consistência da base (quem segura o rojão na hora ruim);
  • coerência do discurso (quando ninguém está filmando).

O que dá para aprender com o influencer é ritmo, linguagem, clareza. O que não dá é terceirizar a existência política para o feed.

NO FIM, A URNA É ANALÓGICA

A grande crueldade da história é essa: por mais digital que seja a campanha, o ato final continua analógico. Gente em fila, dedo apertando botão, papelzinho esquecido no bolso.

A urna não sabe o que é viral. Ela não leu a thread, não viu o trend, não se emocionou com o corte de podcast. Ela só sabe contar voto.

A pergunta honesta que toda equipe deveria se fazer, antes de aprovar o próximo vídeo “sensacional”, é:

“Isso aqui está aproximando alguém de uma decisão de voto ou só aproximando meu marqueteiro de um bom portfólio para a próxima campanha?”

Se a resposta sincera for a segunda, parabéns: você não tem um estrategista. Tem um criador de conteúdo usando sua candidatura como laboratório.

No final do mandato que você talvez nunca tenha, ficarão as lembranças:

  • belas peças,
  • ótimos números de engajamento,
  • zero cadeira ocupada.

Política, por enquanto, ainda é sobre quem senta na cadeira.

O resto é collab. E collab, ao contrário de mandato, não precisa de urna para acontecer.

Quando a estratégia eleitoral vira conteúdo e esquece o eleitor: um retrato mordaz do candidato-performance.
Gabriel Scarpellini é membro fundador da Alcateia Política, é publicitário e especialista em Marketing Político e Comunicação Governamental pelo IDP. Sócio da GAS 360, agência de publicidade, e atua também como consultor em marketing político.