Em seu discurso de filiação ao Podemos no início deste mês, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro defendeu a criação, no Brasil, de uma “corte nacional anticorrupção (…) à semelhança do que fizeram outros países”. Em artigo publicado em setembro na revista Crusoé, Moro já havia lançado a ideia, inspirado na Corte Superior Anticorrupção da Ucrânia, criada em 2019 como uma resposta a uma crescente pressão popular contra a morosidade e a leniência do Judiciário do país em relação a casos de suborno, desvio de recursos e abuso de poder.
O tribunal especializado ucraniano julga apenas casos de corrupção, funciona em duas instâncias e é composto por 38 juízes escolhidos num rigoroso processo de seleção, feito por magistrados e especialistas internacionais. Os primeiros casos chegaram em setembro de 2019 e, dois anos depois, a Corte já havia proferido 45 sentenças, sendo 39 condenações e 6 absolvições. Penas de prisão foram aplicadas a 26 pessoas em 21 dos processos julgados. Entre os condenados, há juízes, promotores, advogados e chefes de estatais, por exemplo.
No discurso de filiação, Moro disse que, no Brasil, o tribunal anticorrupção usaria “estruturas já existentes” e convocaria “juízes e servidores vocacionados para essa tão importante missão”. No artigo publicado em setembro, ele justificou a necessidade da medida em razão da omissão dos tribunais em punir casos de corrupção, o que resulta em impunidade, “o que é bastante grave”, segundo ele.
“A experiência nos ajuda a refletir sobre as respostas possíveis para a questão colocada por este artigo: como fazer que as cortes de Justiça se tornem operantes em relação à criminalidade complexa, entre elas a grande corrupção? A solução ucraniana foi inovadora e contou com o apoio da comunidade internacional. Às vezes é preciso buscar uma solução fora da caixa. Talvez algo parecido seja recomendável nestas paragens”, escreveu o ex-juiz.
No texto, Moro descreveu como a Corte ucraniana foi composta inclusive com ajuda de especialistas estrangeiros, de modo a nomear magistrados “éticos, imparciais e comprometidos com a missão básica” do tribunal. Inicialmente, 342 pessoas se candidataram aos cargos, incluindo juízes, advogados e acadêmicos. O filtro e a seleção final foram feitos por dois grupos: a Comissão de Juízes de Alta Qualificação, da própria Ucrânia, e o Conselho Público de Peritos Internacionais, formado por 6 membros de destaque indicados por órgãos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a União Europeia, que há tempos exigiam medidas mais firmes da Ucrânia contra a corrupção para aprovar empréstimos e acordos.
Apesar do êxito nos resultados, a Corte Superior Anticorrupção da Ucrânia já virou alvo de forte pressão de políticos e autoridades, que buscam sua extinção. No ano passado, 49 parlamentares pediram ao tribunal constitucional da Ucrânia a declaração de sua inconstitucionalidade – a maioria dos signatários integra o partido pró-Rússia do país. Ainda em 2020, uma granada explodiu no pátio do tribunal e danificou sua fachada – até o momento, os autores do atentado não foram identificados. Os juízes da corte também sofrem pressão e viraram alvos de processos disciplinares apresentados por políticos ao Conselho Superior de Justiça – o equivalente na Ucrânia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Brasil.
Antes da lançar a ideia de uma corte nacional anticorrupção, Moro também havia defendido um tribunal internacional para julgar grandes casos de corrupção. A justificativa é quase a mesma: a incapacidade ou dificuldade dos tribunais nacionais em investigar, processar e julgar crimes complexos de corrupção. “Estes são praticados por pessoas poderosas e que não raramente capturam as estruturas do Estado, inclusive os órgãos de controle, inviabilizando a sua ação”, escreveu em outro artigo na Crusoé, publicado em maio.
Segundo ele, seria uma corte semelhante ao Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido em 2002 em Haia, na Holanda, para julgar crimes contra a humanidade cometidos, em geral, por tiranos que nunca eram punidos em seus países de origem.
Moro citou um manifesto internacional que denunciava a dificuldade de punir corruptos em muitos países pela captura que fazem dos órgãos nacionais. “Cleptocratas usam seu poder para suprimir a mídia e a sociedade civil, além de subverter eleições honestas. Refugiados de países falidos liderados por cleptocratas provocam crises internacionais. Revoltas contra a Grande Corrupção desestabilizam muitos países e colocam em perigo a paz e segurança mundial”, diz o manifesto.
Para Moro, a submissão do Brasil a um tribunal do tipo – como já ocorre em relação ao TPI – não seria uma “intromissão indesejada na soberania”, mas um avanço. O melhor, ressalvou, seria que os próprios tribunais brasileiros fossem efetivos no combate à corrupção, mas afirmou que “às vezes, países, empresas e pessoas precisam de um empurrãozinho”.
O desembargador Fausto De Sanctis, hoje no Tribunal Regional Federal da 3.ª Região, em São Paulo, apoia a proposta de Moro de criar um tribunal nacional, mas diz preferir uma corte internacional. “Um tribunal nacional vai gerar os mesmos problemas que existem hoje: a demora [nos julgamentos], mudanças legislativas que beneficiam o criminoso econômico, além da influência político-jurídica sobre os tribunais. São fatos que inibem o combate à corrupção”, afirma.
De Sanctis foi um dos juízes pioneiros no Brasil a atuar em casos de lavagem de dinheiro, em varas especializadas criadas na Justiça Federal para combater a corrupção. Ele esteve à frente, em 2004, da Operação Satiagraha, que investigou crimes financeiros e acabou sendo posteriormente anulada nos tribunais superiores de Brasília.
“Minha preocupação [com um tribunal nacional] é a indicação dos juízes”, diz De Sanctis. “Certamente poderia sofrer das mesmas mazelas [do Judiciário brasileiro]: demora do trânsito em julgado, uso de habeas corpus para paralisar os processos, apesar de os réus estarem soltos. Vai entrar no sistema nosso. Se for um tribunal máximo, aí talvez seria interessante. Agora, se for um tribunal não superior, não vai adiantar muito, porque tudo seria revertido como sempre foi.”
Para ele, um tribunal internacional deveria ser formado a partir somente da indicação de países que figuram no topo dos rankings de combate à corrupção. Preferencialmente puniria os próprios criminosos (como o TPI), mas também poderia punir (por meio de sanções econômicas ou exigências de reparação, por exemplo) os próprios Estados que foram ineficazes em punir os corruptos.
“A ideia do tribunal internacional contra a corrupção existe em face da falência das jurisdições criminais nacionais em combater esse delito. Quando o Estado está comprometido pela corrupção sistêmica, ele não tem mais condições de julgar com isenção. É uma tentativa de evitar a manipulação dos sistema judicial pelos corruptos e corruptores”, afirma De Sanctis.