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Como um jornal de esportes revelou o maior escândalo de saúde pública da Romênia
17/04/2021 / 13:57
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17/04/2021

JOÃO GABRIEL

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O leitor do jornal da Romênia especializado em esportes Gazeta Sporturilor foi surpreendido com uma notícia sobre desinfetantes adulterados em abril de 2016.

Os jornalistas Catalin Tolontan, Razvan Lutak e Mirela Neag publicaram (e dedicaram a capa inteira da versão impressa do jornal para) uma série de reportagens sobre um esquema de corrupção entre o governo romeno e a indústria farmacêutica do país.

Produtos alterados causaram a morte, no hospital, de dezenas de vítimas do incêndio da boate Colectiv, em 2015.

A história levou à renúncia do ministro da Saúde, Patriciu Achimas-Cadariu, e é contada no documentário “Collective” (2019), de Alexander Nanau. A obra, com duas indicações ao Oscar, será exibida no domingo (18) pelo “É Tudo Verdade” -disponível no site do festival, gratuitamente, às 12h.

“A melhor investigação foi feita por um diário esportivo”, grita um manifestante no filme.

“Não sei responder por que nós, jornalistas esportivos [fomos procurados pelas fontes]”, brinca Tolontan, 52, em entrevista por videoconferência ao jornal Folha de S.Paulo. “É mais fácil para você resistir à pressão do governo e das grandes farmacêuticas, porque nada nesse mundo pressiona tanto quanto os torcedores de futebol.”

Com décadas de experiência cobrindo o esporte, o então editor do jornal chegou a viajar para o Rio durante a Olimpíada de 2016, em meio às investigações sanitárias. Foi quando revelou que o material esportivo comprado para a delegação romena era de segunda linha -escândalo que derrubou o presidente do comitê olímpico do país, Alin Petrache.

Ele defende que o jornalismo esportivo pode ter papel importante na crise sanitária da pandemia de Covid-19 e também em tempos de discurso de ódio amplificados por políticos como o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Pergunta – Como o furo [jargão jornalístico para informação exclusiva] mais importante de uma crise histórica da saúde chegou a você?

Catalin Tolontan – Não sei responder por que nós, jornalistas esportivos [fomos procurados]. Acho que vale para todos os jornalistas esportivos: somos treinados desde o primeiro dia a não agradar o público, porque é impossível agradar os fãs, como vocês sabem muito bem no Brasil. Se você escreve sobre um Fla-Flu, no próximo dia, torcedores do Fla, torcedores do Flu e também do Corinthians ficam chateados. E não só os torcedores, mas os jogadores, até o técnico às vezes.

É mais fácil para você resistir à pressão do governo e das grandes farmacêuticas, porque nada nesse mundo pressiona tanto quanto os torcedores de futebol.

Nós trabalhamos com investigações há mais de 25 anos e vimos até o capitão da seleção nacional, que era meu ídolo quando criança, Gheorghe Popescu [ex-Barcelona], acabar na cadeia. Ele foi preso após uma investigação nossa sobre lavagem de dinheiro em clubes.

Com isso nós fomos ganhando a confiança do público, ano após ano. Depois do incêndio [da Colectiv], médicos e pessoas da empresa farmacêutica vieram até nós. Temos reputação de destemidos. Claro que é exagero, mas é a imagem do nosso trabalho.

Como foi o debate para colocar na capa de um jornal esportivo uma manchete de saúde pública?

CT – Na Romênia, o incêndio da Colectiv é um marco temporal. Toda a nossa sociedade está conectada de alguma forma com o caso, foi um luto em todo o país por esses jovens e pelos milhares de romenos que estavam indo a hospitais inseguros. Para mim, como jornalista, não importa se você é esportivo ou político, você é um jornalista de notícias em primeiro lugar. Toda grande investigação, no primeiro momento, é uma pequena notícia e um monte de curiosidade. Não estamos na posição de recusar a notícia só porque cobrimos principalmente esportes.

Você acredita que há separação entre o jornalismo esportivo e as outras áreas?

CT – É isso que o Collecitve significa para o jornalismo em todo o mundo. Não merecemos crédito por isso, o crédito é para o diretor e sua equipe. A questão do filme é sobre perseguir a responsabilidade do governo, isso é um trabalho de todos os jornalistas. Temos um ditado na Romênia que é: os jornalistas esportivos são responsáveis pelos cantos [em inglês, corners, mesma palavra para o escanteio do futebol]. Isso é uma grande vantagem para nós, porque quando fazíamos perguntas [às autoridades], não nos davam importância. Diziam “deixa para lá, eles não entendem de saúde pública, de medicina”. E a nossa resposta a isso foi: OK, não entendemos, então, como governantes de um estado democrático, por gentileza, expliquem para nós como se fossemos uma criança da quarta série. E eles ficavam chocados. Porque é bastante difícil explicar a corrupção com um linguajar simples.

No Brasil, há quem defenda um pensamento de que esporte e política não se misturam. É assim na Romênia?

CT – A primeira reação do público é: estou neste site esportivo, não para ver política, mas para ver esportes, para me distrair. E isso é também uma vantagem, porque o leitor fica menos cético quando lê a notícia vinda de um jornal esportivo. O público sabia que não éramos parciais, que trataríamos os partidos como os times.

Mas se temos boas informações, é nosso dever dar a eles. O L’Equipe, a Bíblia do jornalismo esportivo, fez uma reportagem sobre abuso sexual e o esporte foi apenas o ponto de início. O mesmo no doping. Falamos de esporte inicialmente, mas envolve medicina, crimes, ligações com a máfia às vezes, muito dinheiro. O esporte é apenas o topo do iceberg.

Qual o papel do jornalismo esportivo durante uma crise sanitária como a que vivemos hoje?

CT – É o mesmo dinheiro público que é gasto para construir estádios que para hospitais. Então o papel é apenas ir atrás dos fatos, ser muito preciso. E ser preciso é questão de vida ou morte na nossa profissão. Uma das primeiras lições do jornalismo esportivo é que se você errar, os torcedores…

Há benefício em ser um jornalista esportivo neste momento?

CT – Estive em seis edições de Jogos Olímpicos, centenas de jogos. E não sei se há qualquer especialidade jornalística que seja obrigada a terminar o artigo no momento em que o jogo termina; escrever em tempo real, contando o significado do jogo e não só os lances. Você é treinado para ser muito rápido, o que é uma grande vantagem para o público, no fim das contas.

Se tiver um protesto na cidade, também pode ser uma vantagem ter um jornalista esportivo lá, porque ele conhece a multidão, não vai ter medo dela mesmo se houver violência. Porque é o que fazemos o tempo todo, pessoas nos xingam pelo nosso trabalho há 30 anos, desde antes das redes sociais, nos estádios.

Com as redes sociais, notícias falsas e mensagens ofensivas têm, por vezes, mais audiência que os furos de reportagem. Como lidar com isso?

CT – Acho que essa é a questão principal, não apenas no jornalismo esportivo, nem só no jornalismo, mas nas nossas democracias. Se você for um profissional, de qualquer área, e não for forte o suficiente para resistir a agradar o público, você se perde. E se você tiver medo dos comentários do público, você está perdido. Claro, é muito difícil resistir, porque há muito discurso de ódio, comentários xenofóbicos, ultranacionalistas, desbalanceados, propaganda [política], pessoas pagas para o atacar. O jornalista não pode buscar a popularidade, mas os fatos. O público tem direito a ter opiniões, mas os fatos não são mutáveis. Os fatos são como os resultados dos jogos.

No filme, vocês debatem o comentário de um leitor que usa a palavra genocídio para caracterizar o que se passa na Romênia naquele momento. Por que vocês não vetaram o comentário? Para você, que conhece um pouco do governo Bolsonaro, seria correto usar essa palavra para se referir a ele?

CT – Em alguns momentos, se você usa a palavra genocídio como opinião, não é um veredito judicial, apenas uma opinião. E o público é livre para usar esse tipo de opinião. Mas falando sobre genocídio, discurso de ódio e populismo, nós conhecemos bem isso aqui na Romênia. Nosso último presidente [Traian Basescu] foi um populista de extrema direita.

Quando estive no Brasil para a Olimpíada, viajei para Petrópolis, porque o escritor Stefan Zweig se exilou e morreu lá em 1942. E ele usa “genocídio” da seguinte forma: a Europa se autodestrói por um espírito genocida que começa com o discurso de ódio, medo, decisões ruins e pessoas poderosas que não fazem nada contra os populistas. Faço essa comparação não apenas para o Brasil, mas para nós também. Vocês infelizmente tem quase um modelo moderno desse populista.