Tudo começou em outubro de 2019, quando o pesquisador alemão das áreas de segurança, crime e relações civil-militares Christoph Harig se deparou com uma curiosa foto de uma apreensão policial realizada pela Polícia Militar de Minas Gerais.
A imagem mostrava, perfeitamente enfileirados e acompanhados de um logotipo da PM mineira, 22 potes do creme de avelã Nutella, que haviam sido recuperados pela polícia após uma tentativa de furto a um supermercado no município de Patrocínio, região do Triângulo Mineiro.
“Alguém me alertou que esse tipo de foto era uma verdadeira tendência entre as polícias brasileiras, então criei o hábito de buscar e colecionar essas imagens, em parte para me divertir, mas em parte também pelo choque com o absurdo da guerra às drogas”, conta Harig.
Morador de Hamburgo e atualmente pesquisador na Universidade de Tecnologia de Braunschweig, Harig estudou a política de pacificação das favelas cariocas em um PhD (nível de estudo equivalente ao doutorado brasileiro) realizado entre 2013 e 2017 no King’s Brazil Institute, instituto dedicado ao estudo do Brasil, vinculado ao King’s College de Londres.
Falante de português após ter estudado por um período em Lisboa, Harig passou alguns anos viajando ao Brasil com frequência por conta de sua dissertação sobre segurança pública no Rio.
Concluída a pesquisa, o estudioso agora mantém o vínculo com o país ao buscar periodicamente termos como “polícia encontra drogas” e “polícia apreende” no Google, exploração que sempre retorna material fresco para a coleção do acadêmico, que já conta com dezenas de imagens, em geral divulgadas pelas assessorias de imprensa das próprias polícias.
Entre as preferidas de Harig estão uma queda de dominó feita com pacotes de cocaína, resultado de uma apreensão realizada pela Polícia Rodoviária Federal; uma caveira desenhada com pílulas coloridas de ecstasy, obra de uma delegacia da Polícia Civil de Canoas, no Rio Grande do Sul; e um caranguejo vermelho bastante parecido com o personagem Seu Siriguejo, do desenho animado Bob Esponja, feito com tijolos de maconha e arquitetado pela Polícia Rodoviária Estadual do Paraná.
Cocaine domino, brought to you by Brazil's Federal Highway Police pic.twitter.com/tkMrm0cNhr
— Christoph Harig (@c_harig) October 15, 2019
“Dou aulas sobre a guerra às drogas e uso algumas dessas fotos para mostrar aos estudantes como ela está entranhada em todos os níveis da atividade policial”, diz Harig.
“Guerra às drogas” é um termo que passou a ser usado na década de 1970, quando o então presidente americano Richard Nixon declarou em uma coletiva de imprensa que o uso de drogas ilegais era o “inimigo público número um” dos Estados Unidos.
Desde então, os EUA lideram uma campanha global de combate ao tráfico internacional de drogas, envolvendo proibição do uso e intervenções militares, com o objetivo de desincentivar a produção, distribuição e o consumo de entorpecentes.
“A guerra às drogas é um desperdício de energia e recursos e causa danos imensos à população, especialmente à população pobre e negra, que é tipicamente vítima das ações policiais feitas em nome dessa guerra”, avalia Harig.
O pesquisador cita, por exemplo, os critérios que considera questionáveis para determinar quando uma pessoa é usuária ou traficante de drogas, e o encarceramento em massa decorrente dessa política.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo: 748 mil pessoas, segundo dados do Infopen, sistema de informações estatísticas do Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
O país só está atrás dos Estados Unidos (2 milhões) e da China (1,7 milhão) na lista de nações que mais prendem do mundo, conforme o World Prison Brief, levantamento internacional de dados prisionais realizado pela ICPR (Institute for Crime & Justice Research) e pela Birkbeck University of London.
Algumas das fotos revelam, segundo Harig, a ineficiência da política de apreensão, com a exibição orgulhosa pela polícia da quantidades ínfimas de tóxicos.
“É bastante questionável que essas pequenas apreensões sejam apresentadas como um grande sucesso da guerra às drogas. Elas não mudam nada”, afirma.
“Mesmo as grandes apreensões não mudam nada na questão estrutural do tráfico de drogas, mas é uma forma de a polícia mostrar aos outros departamentos de polícia e à população que está fazendo algo contra o crime, embora, na prática, isso faça muito pouca diferença.”
Harig considera, porém, que é ingênuo acreditar que a liberalização do uso de drogas poderia, de maneira isolada, resolver o problema.
“Liberar as drogas não daria fim ao crime organizado”, afirma o pesquisador.
“Não há solução perfeita que resolva o problema de maneira imediata. Mas acredito que é preciso tratar as drogas como uma questão de saúde pública, como era antes de os Estados Unidos darem início à guerra.”
Segundo ele, descriminalizar o uso de drogas, como fez Portugal em 2001, é importante para reduzir a violência nos países consumidores, mas não resolve o problema de violência ao longo da cadeia de produção.
“Defendo a liberalização das drogas com um forte controle estatal dos mercados. Mas é preciso levar em conta que, quando se tira um produto do controle do crime organizado, esses grupos tendem a buscar novos mercados para lucrar.”
Ele cita, por exemplo, o caso da liberação do álcool nos Estados Unidos, após a proibição que vigorou entre 1920 e 1933, que levou o crime organizado local a ter como principal fonte de renda a extorsão de pequenos negócios.
Num caso mais recente, o Uruguai viu um aumento na violência entre traficantes, após o processo de legalização da maconha iniciado em 2013, devido à maior disputa entre as gangues por um mercado ilegal agora menor, concentrado no comércio de cocaína e drogas sintéticas.
A partir de seus estudos sobre a política de pacificação em favelas cariocas, Harig vê com descrença o novo projeto de ocupação de comunidades iniciado pelo governo do Rio de janeiro no mês passado e batizado de “Cidade Integrada”.
Numa ação com a participação de mais de 1 mil homens, a polícia carioca ocupou na manhã de 19 de janeiro as comunidades de Jacarezinho e Muzema, nas zonas Norte e Oeste do Rio, respectivamente.
O governador Cláudio Castro (PL) foi acusado por críticos de fazer a ação de olho nas eleições de outubro e o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), disse não ter sido informado previamente das ocupações.
“A reação de Eduardo Paes já sugere que se trata de uma ação de marketing visando as eleições e não uma ação coerente, que exigiria a atuação coordenada de todos os atores”, avalia Harig.
“Isso também foi um problema nas UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora, programa de ocupação de favelas iniciado em 2008 no Rio] e parecem apenas estar repetindo o passado, sem aprender com os erros”, afirma.
Na avaliação do pesquisador, a abordagem “de cima para baixo” das políticas de ocupação, feitas sem a participação de organizações da sociedade civil, não atende às demandas da população por mais e melhores serviços públicos.
A BBC News Brasil procurou o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Polícia Militar do Rio para comentar as críticas de Harig ao programa “Cidade Integrada”.
O governo do Rio respondeu que o programa foi criado “para levar cidadania, oportunidades e segurança para as comunidades”, num investimento de R$ 500 milhões.
Ainda segundo o governo, “um dos pilares do programa é o diálogo com as lideranças comunitárias, e elas têm sido constantemente ouvidas sobre as prioridades para esses locais”.
A gestão cita ainda que já foram feitos 6,5 mil atendimentos à população, entre emissão de documentos, banco de emprego, ações de saúde, orientação para regularização de imóveis e atrações culturais no Jacarezinho e na Muzema.
Quanto à declaração do prefeito Eduardo Paes de que ele não teria sido informado previamente da operação, o governo de Claudio Castro respondeu que “a Prefeitura do Rio é uma grande parceira do Governo do Estado no programa Cidade Integrada e tem trabalhado no recolhimento do lixo — um problema crônico dessas áreas —, conserto de buracos, limpeza de caixas de ralo e construção de caixas de contenção, entre outros serviços”.
Em um artigo publicado em 2012 sobre o crescente uso das Forças Armadas nas políticas de segurança pública no Brasil, Harig levantava preocupações quanto ao estado da supremacia civil sobre os militares, diante do passado autoritário do país.
Dez anos depois, o pesquisador avalia que o governo de Jair Bolsonaro (PL) é um governo controlado pelos generais.
“A consequência de três anos de governo Bolsonaro é que, aconteça o que acontecer nas próximas eleições, os militares estão ganhando”, avalia Harig.
“Caso Bolsonaro se reeleja, eles ainda controlarão o governo. Se Sergio Moro vencesse, muitos generais continuariam a ter influência nesse governo, mantendo os privilégios militares. E mesmo se Lula vencer, os militares têm uma posição tão forte no momento que ele terá que barganhar com os generais para governar. Então não espero que os militares percam nem um pouco de seus poderes e privilégios no próximo governo”, diz o pesquisador.
Para o estudioso, a Argentina é um exemplo bem sucedido de país com passado autoritário que conseguiu efetivamente afastar os militares da política pouco depois da ditadura militar por lá.
E qual é o caminho, segundo Harig?
“Os políticos civis precisam parar de buscar soluções militares para problemas que podem ser solucionados por instituições civis. No Brasil, os militares reformam pistas de aeroportos, distribuem água aos afetados pela seca no Nordeste. Quando recebem esse tipo de tarefas, fica fácil para os militares se apresentarem como uma instituição confiável, incorruptível. Os políticos precisam reduzir as oportunidades para os militares manterem essas narrativas.”
Da BBC News Brasil