Ao anunciar sua participação no “Big Brother Brasil 22”, Jade Picon fez uma promessa ao público. Entusiasta dos filtros de beleza, que retocam a aparência física nas fotos e nos vídeos publicados em suas redes, a influencer se mostraria agora longe das moderníssimas ferramentas de edição que ajudaram a projetá-la como um ícone estético. Através das câmeras da casa, os fãs a veriam, enfim, “sem filtros”. “Somente eu: a Jade”, anunciou.
A aparência “real” da it girl acabou, claro, virando assunto na internet. Houve quem não conseguisse reconhecê-la sem os recursos que corrigem as imperfeições físicas, houve quem não visse diferença entre a musa da casa e a das redes, e houve quem repensasse a sua própria relação com os filtros. “Ver a Jade no BBB abriu totalmente meus olhos”, tuitou uma jovem espectadora. “Sigo ela há muitos anos e sempre coloquei ela como uma deusa até ver que ela é normal”.
A fábula das duas Jades é sintoma de um tempo em que o eu virtual e o eu real se fundiram. Mais do que entrar em nossas vidas, os filtros se tornaram parte dela. Democráticos, são usados tanto por famosos quanto por reles mortais. Nascida na era das redes, a geração atual é a mais atingida pelo fenômeno. Em alusão à primeira rede social que popularizou os filtros, os médicos cunharam a expressão “disformia do Snapchat” para descrever os jovens que não conseguem mais se reconhecer sem retoques digitais. Não à toa, os profissionais da saúde se preocupam com o crescente número de procedimentos estéticos para imitar os seus efeitos.
— As novas gerações apresentam uma profunda interligação entre uma realidade construída por imagens e suas experiências no cotidiano — diz Bernardo Conde, professor de Ciências Sociais da PUC-Rio, que já ouviu em sala de aula alunos relatarem experiências com disformia. — Os filtros estão negociando uma realidade nova de uma velha perspectiva de ideal. As pessoas têm consciência de que estes recursos não mostram a realidade, mas sentem que eles apontam certos ideais a serem seguidos. E saber usá-los para projetar essa imagem de si mesmo virou um mérito.
O francês Marcel Proust escreveu certa vez que o que ele desejava em uma mulher era a sua “paisagem”, ou seja, um imaginário produzido por ela. Como a mulher que faz a cabeça do romancista, estamos sempre projetando uma essência a ser desejada. Na era dos filtros, este processo foi colocado a nu. Isso porque, com o corpo das celebridades mudando em tempo real diante de todos, a transformação física não é mais algo que precisamos esconder, observa a psiquiatra Joana De Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio. Ela lembra que recursos para editar nossa aparência sempre existiram, da maquiagem ao Photoshop. A novidade é que agora eles estão a rápido alcance, alimentando um mercado milionário.
Com um celular na mão, qualquer um pode personalizar seu tão sonhado visual, eliminando manchas e olheiras, clareando os olhos e dentes, alongando os cílios ou deixando a pele mais sedosa. É um constante “a gente pode chegar lá” (se contar com a edição certa). Isso, claro, ajuda a normalizar a cultura dos retoques — seja na foto da rede social, seja na mesa de cirurgia. Por essas e outras, a busca pela palavra “rinoplastia” explodiu em 2020. Até a diva pop Anitta revelou que já fez procedimentos estéticos para ficar mais parecida… com a sua própria imagem nos filtros.
— A transformação física é espetacularizada ao ser registrada passo a passo — diz Novaes. — O corpo vira commodity, e o sujeito não precisa ser protagonista de novela para que isso aconteça. A figura do influencer contribui porque o influencer também pode ser qualquer um com um celular. É um empreendedorismo de si mesmo, a lógica do “corre atrás”, “todo mundo consegue, então por que você não”? Por isso aparece tanta gente deprimida, com burnout.
Filtro para chamar de meu
Conhecida por sua personagem Blogueira do Fim do Mundo, uma sátira das influencers que vendem uma vida fora da realidade, a atriz e youtuber Maria Bopp já sentiu na pele os efeitos dos filtros.
— Apesar de ser crítica a esses mecanismos de edição, eu mesma uso algo leve quando preciso aparecer em vídeo e não tenho tempo de me maquiar — conta a comediante, que aliás já gravou esquete fazendo piada sobre os usos excessivos do recurso. — Nada que mude muito a feição do meu rosto, mas que esconda manchas e acne. O problema é o contraste quando volta para a imagem original. Dá um choque, começo a me achar feia e fico querendo voltar a ficar igual ao filtro.
Com quase um milhão de seguidores no Instagram, o produtor de filtros Igor Saringer se notabilizou ao ter seu trabalho postado por famosos. Assim que são adotadas por alguma celebridade (que raramente paga pelo produto), as suas criações viralizam e passam a ser usadas por milhões de pessoas. Com a divulgação, o criador ganha convites para projetos publicitários e encomendas de filtros personalizados para pessoas físicas. Nesse último quesito, conta ele, os mais pedidos são mesmo os de beleza, em geral para retocar a pele (“o efeito blur, sabe?”) ou de maquiagem (“às vezes leve, às vezes não”).
— Acredito que a preferência seja por um filtro simples de beleza para poder usar todo dia nos stories, sem ter que usar o de outra pessoa — diz Saringer, que viralizou em 2019 com um filtro de maquiagem baseado na série “Euphoria” (fez tanto sucesso que chegou a ser divulgado pela maquiadora da produção).
Beleza natural
Em outra direção, celebridades como Taís Araújo, Mariana Goldfarb, Paolla Oliveira e Preta Gil aderiram ao movimento #nofilter, barrando as ferramentas de suas publicações. Na Noruega, uma lei criada no ano passado chega a exigir que influenciadores informem sobre as edições quando usam fotos retocadas.
— Dá para ser uma pessoa pública sem ter que se mostrar perfeita — diz a modelo Raissa Santana, miss Brasil 2016. — Não exagerar nos filtros nos ajuda a se conectar com quem está ali do outro lado. E é bom para a saúde mental. O importante é a gente entender por que está usando um filtro, e usar quando se sente confortável, não por obrigação.
Fundadora do Movimento #CorpoLivre, que atua pela liberdade em relação aos padrões de beleza, a jornalista Alexandra Gurgel lembra que tudo é transitório. E vê uma tendência à “desplastificação” das celebridades, uma volta a um suposto natural.
— Até influencers que tanto promoveram um padrão de beleza irreal, como a Gabriela Pugliese e as Kardashians, estão reduzindo o uso de modificações porque agora acham que não combinam mais com elas — diz a autora de livros como “Comece a se amar” (2021). — Aí você faz cirurgia para ficar igual ao corpo da moda, mas o que acontece se o corpo da moda muda em seguida?
Este caminho invertido acaba de ser retratado pela cineasta, socióloga e psicanalista Ingrid Gerolimich no documentário “Explante”, que acaba de ser lançado em Portugal e terá uma sessão gratuita nesta terça-feira, às 19h, no Teatro Municipal. O título faz referência a um movimento que tem levado as mulheres a retirarem suas próteses de silicone, seja pela sua relação com essas doenças, seja por um exercício de maior aceitação do corpo.
— O mesmo Instagram dos filtros e da pressão estética é aquele que abriga movimentos de mulheres que estão denunciando os perigos destas práticas e ajudando outras mulheres a construírem um olhar mais generoso sobre seus corpos— diz Gerolimich. — Graças a essa rede de troca, o explante tornou-se um movimento e hoje já figura na lista das 20 cirurgias estéticas mais procuradas. Este é o outro lado da moeda.
Informações: O Globo