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Diversidade que espelhe o Brasil real na propaganda é positiva para os negócios
31/10/2021 / 11:46
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Na intensa exposição publicitária a que todos estamos sujeitos hoje, calculada em mais de 6.000 mensagens diárias, a ideia de diversidade pode ser um imperativo, um propósito ou apenas uma palavra mágica —e vazia.

Novas e potentes pressões de consumidores e do próprio mercado vêm alterando a composição de imagens e representações projetadas pelas marcas, num percurso de erros e acertos, caricaturas e empoderamento, que está longe de espelhar a sociedade brasileira como ela é.

“São mensagens que ajudam a formar nossos parâmetros do que é bonito e do que é feio, dos comportamentos que são aceitáveis ou inaceitáveis”, explica a publicitária Isabel Aquino. Ela trabalhou por anos no planejamento de agências. Hoje, é consultora técnica do movimento Aliança Sem Estereótipos, ação que busca erradicar estereótipos nocivos de gênero nos conteúdos de publicidade e de mídia.

“A publicidade tem esse poder e, portanto, temos nas mãos a possibilidade de entregar novos referenciais, mais inclusivos e que representem outros tipos de pessoa”, explica ela, que é uma das responsáveis pela pesquisa Todxs, parceria da agência Heads com a ONU Mulheres, que desde 2015 monitora a diversidade em anúncios de TV e no Facebook.

A pesquisa aponta para uma evolução evidente. Em 2015, o percentual de protagonistas negras em comerciais de TV, por exemplo, era de apenas 4%. Subiu para 22% em 2020. Parece muito —e esse percentual é ainda mais alto no digital: 35% de mulheres negras em 2020—, mas protagonistas brancas seguem nos 70%, e o padrão de beleza predominante é o de uma mulher branca, magra, de cabelos lisos e castanhos.

“Estamos numa estagnação que ainda está longe de representar a realidade do país”, afirma Isabel Aquino. O Brasil tem 56% de pessoas que se autodeclaram negras.

Entre homens protagonistas de peças publicitárias de TV, em 2015 apenas 1% era negro, percentual que bateu 22%, em 2019, e caiu a 7%, em 2020. O padrão de beleza é um homem branco, malhado, de cabelo liso e castanho.

A própria evolução da pesquisa é reflexo das mudanças na comunicação das marcas. Surgiu seis anos atrás para detectar a representação estereotipada de mulheres, seja no papel da gostosa, seja no da mãe cuidadosa, e ampliou o escopo de monitoramento para raça, LGBTQIA+, constituição corporal, público maduro e pessoas com deficiência.

Entre empoderar e estereotipar as facetas da diversidade, quase 1/3 dos anúncios monitorados foram considerados neutros.

“Sabem que diversidade é uma questão, mas ficam em cima do muro ou preenchem aquele ‘checklist’ da diversidade, sem se aprofundar”, avalia Aquino. A publicitária ainda diz mais: “Com isso, criam caricaturas em que a peça tem um negro, um asiático, uma pessoa com deficiência, mas não dá voz para ninguém”.

“Marcas são como pessoas. Quem só fica quieto e não se posiciona dificilmente será lembrado”, compara Ariel Grunkraut, vice-presidente de marketing, vendas e tecnologia do Burger King. “Marcas têm medo de se posicionar. Com isso, deixam de ser relevantes e são esquecidas. Ao ficar em cima do muro, não se conectam com ninguém”, avalia ele, que liderou campanhas com drag queens, pessoas com deficiência visual e adeptos do poliamor.

“Nossas campanhas querem retratar sem estigmatizar e encorajar as pessoas a serem elas mesmas. Não usamos atores nem celebridades. Tudo tem que ser o mais próximo da realidade possível”, afirma Grunkraut.

Neste ano, a gigante do fast-food foi alvo de ataques homofóbicos depois de colocar no ar a campanha “Como Explicar?”, em que crianças explicam o amor de seus pais, todos casais LGBTQIA+. Meses antes, havia sido posto em votação em São Paulo o projeto de lei 504/2020, que propõe limitações à representação LGBTQIA+ em peças comerciais que tivessem crianças para evitar “desconfortos sociais”. Alvo de protestos, o projeto foi retirado da pauta.

O tema da diversidade sexual também impôs desafios à Natura, empresa reconhecida por romper com paradigmas ligados à beleza madura há décadas e por uma política interna de responsabilidade ambiental e social.

A marca já retratou homens usando delineador, mas causou fortes reações ao mostrar casais de mulheres, cisgêneras e trans, que borravam seus batons em beijos.

“A gente se defendeu, reafirmando nossa posição política a favor do amor, das relações, da diversidade e dos encontros”, conta Maria Paula Fonseca, diretora global da marca Natura. Ela explica que os posicionamentos são compartilhados com as milhares de consultoras da Natura, amplificando os debates. “A gente enfrenta um processo de educação que é também interno. Marca é algo que constrói cultura.”

No ano passado, a Natura enfrentou uma onda de ataques ao contratar Thammy, um homem trans, para ações de Dia dos Pais nas redes sociais. “Nossa motivação é ter coragem de falar do que é real, sem julgamentos sobre certo ou errado. Estamos tentando lidar, com delicadeza e sensibilidade, com esses temas para prestar um serviço”, afirma a executiva.

A campanha parece ter obtido resposta positiva de investidores. As ações da Natura acumularam alta de 10% logo após o lançamento do pai trans garoto-propaganda.

Marcas que apostaram em representar outras famílias, outros afetos, outros corpos e outros modos de vida viram aumentar suas vendas e subir suas ações na Bolsa —sinal de que essa mudança agrada, a um só tempo, consumidores e investidores. É sinônimo de bom negócio.

Por um lado, as empresas estão pressionadas por um tipo de consumidor que escolhe cada vez mais onde vai colocar seu dinheiro. Por outro, o mercado financeiro cada vez mais segue a agenda ESG (melhores práticas ambientais, sociais e de governança) para balizar investimentos.

“Não adianta nada a empresa ter um posicionamento muito forte para fora e, vista por dentro, não representar aquilo que fala”, diz o VP do Burger King. “Essa é uma preocupação gigante para nós, com compromissos, metas e prazos para termos cada vez mais diversidade.”

Nesse campo, novas condições, antes impensáveis, têm acelerado o ritmo das mudanças. A Bolsa de tecnologia Nasdaq passará a exigir que as corporações ali listadas ampliem a diversidade de seus conselhos para seguirem na relação.

As cerca de 3.000 empresas do índice deverão ter em cargos de direção ao menos uma mulher e uma outra pessoa que se identifique como de uma minoria racial ou como LGBTQIA+.

“Precisou a Nasdaq ser chefiada pela primeira vez por uma mulher para acontecer isso”, ressalta a consultora de criatividade Cris Naumovs, citando Adena Friedman, presidente e CEO da Nasdaq, autora da proposta aprovada.

“A pressão econômica talvez seja a única coisa que funcione na ampliação da diversidade. É pela força da grana, e não por razões civilizatórias, que isso tem mudado”, avalia Naumovs. “O importante é que elas mudem e que seja possível construir consistência a partir disso”, acrescenta ela, que vê nos jovens que agora ingressam nas corporações um outro vetor de mudanças.

Os efeitos da diversidade nas corporações, para além das imagens que elas projetam em suas campanhas publicitárias, é cada vez mais conhecido. Estudo da consultoria internacional McKinsey já apontou para uma relação positiva entre diversidade e performance financeira.

Segundo a McKinsey, empresas que investiram em composições étnicas e culturais mais diversas para suas equipes superaram em 36% a lucratividade das concorrentes que não fizeram este investimento.

Foi em busca dessa diversidade interna que o Magazine Luiza viu uma ação de recursos humanos se transformar em marketing, com alto impacto na reputação da marca. Ao anunciar um programa de treinamento exclusivo para pessoas negras, em 2020, a varejista viu sua marca viralizar nas redes e suas ações valorizarem na Bolsa em meio a acusações de discriminação e menções de apoio de ativistas e celebridades.

“Era uma ação afirmativa pragmática para mexer no ponteiro da diversidade racial da empresa. O programa de trainee é uma janela privilegiada para essa entrada, ainda que não seja a única”, explica Ana Luíza Herzog, gerente de reputação e sustentabilidade do Magalu.

Ela lembra que a equidade de gênero já fazia parte do DNA da marca, mas um censo interno apontou que era preciso ir além, agora no campo racial. “Nossas ações não são lacração.”

Arturo Nuñez, CMO (chief marketing officer) do Nubank, diz que diversidade não é algo ‘‘bom’’ de se ter ou a coisa ‘‘certa’’ a se fazer. “Já era hora de empresários descobrirem que diversidade é um bom negócio”, afirma. Depois de passar por NBA, Nike e Apple, Nuñez chegou à fintech pouco antes da cantora Anitta entrar para o conselho do banco e de ser anunciada parceria com o rapper e escritor Emicida.

No ano passado, durante entrevista no programa Roda Viva (TV Cultura), a cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, disse que a empresa não podia “se nivelar por baixo” para buscar diversidade. No segundo pedido de desculpas, que começa com “O Nubank errou”, a empresa se comprometeu com “uma agenda de reparação histórica e de combate ao racismo estrutural”.

Um novo campo para as marcas tem sido o de ações concretas que revelem os vieses do mercado e que favoreçam grupos historicamente subalternizados. É o caso do movimento RGBlack, uma parceria da AKQA com a Pródigo Filmes e a diretora Juh Almeida para debater as implicações tecnológicas do racismo.

A ação foi pensada a partir de uma descoberta: a de que filmes fotográficos tiveram suas cores calibradas a partir dos chamados cartões Shirley, que contêm a foto de uma mulher branca como referências de cor, exposição de luz e densidade.

A calibragem que privilegia a pele branca estaria por trás do fato de retratos de pessoas negras ficarem, em muitos casos, aquém do seu potencial. Na contramão desse processo, o RGBlack criou “cards” de referência de iluminação, beleza e colorimetria para os tons da pele negra.

Em outro campo, a cervejaria brasileira Ambev, uma das empresas pioneiras no apoio às paradas do orgulho LGBTQIA+, tem buscado ações que amplifiquem mensagens de respeito ao mesmo tempo em que apoia projetos destinados a essa comunidade. A companhia já promoveu ações por meio de hashtags como #OrgulhoResiste, pintou latinhas com a bandeira do arco-íris e lançou coleção da Skol com renda 100% revertida para ONGs de acolhimento a pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social.

As ações começaram em 2016, um ano depois de a empresa levar uma rasteira de uma campanha que poderia sugerir comportamentos abusivos e até violência contra a mulher. No Carnaval daquele ano, sob o slogan “Esqueci o não em casa”, a Skol foi alvo de protestos que viralizaram nas redes e teve de retirar a campanha às pressas, junto a uma nota com pedido de desculpas. Foi um ponto de virada para a marca e a empresa.

“Essa campanha faz parte de um processo de aprendizado, que é contínuo”, afirma Paula Guz, head de operações do Draftline, estúdio de conteúdo da Ambev. “Temos consciência de que essas mudanças não acontecem da noite para o dia e que ainda há muito a ser feito, mas estamos empenhados em construir um mercado mais diverso, inclusivo e representativo.”

Executivos, publicitários e consultores não têm dúvida: este é um caminho sem volta. Marcas que não entrarem neste percurso tendem a ficar para trás.

“Cada marca começa de um lugar e, às vezes, passar pelo trauma de precisar tirar uma campanha do ar devido a erros grosseiros na mensagem se torna um ponto de inflexão para promover grandes revoluções na comunicação e dentro da corporação”, diz Isabel Aquino. “A mensagem para as marcas é: tenham coragem.”

Da Folha de S. Paulo