“Rapaz, você não está entendendo… é o PIB [Produto Interno Bruto] de Campina Grande que está nisso aí. Comerciantes, servidores públicos, aposentados…”, diz uma pessoa que investiu R$ 50 mil na Braiscompany e não quer se identificar. Após ganharem destaque em veículos de imprensa nacionais como O Globo e O Antagonista, as denúncias e investigações contra a empresa paraibana de criptomoedas repercutem em reportagem da BBC Brasil, publicada neste sábado (11.02).
A matéria apura a venda de um jatinho patrimônio da Braiscompany para uma empresa de comércio hospitalar do Espírito Santo, concretizada na última quinta-feira (9/2), bem como a provável deflagração de uma ação civil pública para reparação de danos coletivos. O colunista social da região de Campina Grande e influenciador, Celino Neto também deu declarações à reportagem.
Confira na íntegra a matéria de Shin Suzuki, da BBC News Brasil em São Paulo:
Campina Grande, no interior da Paraíba, passou as últimas semanas sob perplexidade e tensão. A cidade conhecida pelo “maior São João do mundo” virou o epicentro da mais recente suspeita de golpe com criptomoedas no Brasil.
Milhares de campinenses, motivados pelo boca a boca entre parentes, amigos e conhecidos, investiram suas economias pessoais sob a promessa de um ganho financeiro ao redor de 8% ao mês. É uma taxa considerada irreal pelos padrões usuais do mercado.
O negócio foi oferecido por uma empresa local, a Braiscompany, e tinha um modelo pouco convencional.
Os participantes convertiam seu dinheiro em ativos virtuais, que eram “alugados” para a companhia e ficavam sob gestão dela pelo período de um ano. Os rendimentos dos clientes representavam o pagamento pela “locação” dessas criptomoedas.
Mas o calendário de remuneração dos dividendos deixou de ser cumprido desde o final do ano passado, e a hipótese de calote paira no ar.
Antônio Neto Ais, o fundador da companhia, disse em uma live que gerenciava R$ 600 milhões de 10 mil pessoas.
A Braiscompany não respondeu aos questionamentos feitos pela BBC News Brasil a respeito da possibilidade de não honrar os compromissos com seus clientes e sobre outros pontos do caso.
Os rumores sobre o alto retorno financeiro pago pela Braiscompany, fundada em 2018, se espalharam além das divisas de Campina Grande. Atraiu pessoas da capital João Pessoa (distante a apenas 125 km) e de outros locais, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Mas é a cidade paraibana de 400 mil habitantes que representa o principal da clientela da “Brais”.
“Rapaz, você não está entendendo… é o PIB [Produto Interno Bruto] de Campina Grande que está nisso aí. Comerciantes, servidores públicos, aposentados…”, diz uma pessoa que investiu R$ 50 mil na Braiscompany e não quer se identificar.
“Eu conheço gente que vendeu apartamento e colocou a grana lá. Comerciante que colocou as finanças da empresa.”
Outro investidor, que saiu de Campina Grande há 8 anos para viver em Portugal, afirma ter transferido R$ 230 mil para o negócio.
Segundo ele, esse valor representa todas as suas economias acumuladas nesse tempo trabalhando como agente de viagens na Europa: “Tudo o que eu construí na minha vida”.
Ele acha que não verá mais esse dinheiro.
“Estou levando isso como um luto. A perda de um parente. Sabe quando morre uma mãe, um pai, um irmão? Mas eu tenho que seguir minha vida, tenho que continuar. Fui iludido e fui enganado. E muito bem enganado.”
Também é mais um a usar a expressão “PIB de Campina Grande” para ilustrar o envolvimento da população local de maior poder aquisitivo com a Braiscompany. Ele observa, no entanto, que o esquema com criptomoedas conseguiu atrair até pessoas da região com menos recursos.
“Os arredores de Campina Grande têm muita zona de interior, de sítio, de seca, de gente que enfrenta escassez de coisa básica. Gente que vive de plantação, de gado, em lugares como Queimadas, e colocou R$ 3.000, R$ 5.000 nesse negócio. São várias famílias nessa.”
Para o advogado especializado em ativos digitais e blockchain Bernardo Regueira Campos, a Braiscompany conseguiu criar “um medo de ficar de fora” de uma grande oportunidade de ganhar dinheiro.
“Ela fazia as pessoas se sentirem um burro excluído se você não investisse. Porque seu amigo que entrou nessa comprou um [relógio] Rolex, um carro para a namorada.”
Além da taxa de retorno financeiro muito acima do regularmente praticado no mercado, boa parte da atração exercida pela Braiscompany está ligada à imagem de seu fundador, Antônio Inácio da Silva Neto. Ele adotou suas três primeiras iniciais como sobrenome e se apresenta como Antônio Neto Ais.
Seu Instagram, com 900 mil seguidores, tem uma curadoria cuidadosa de postagens. São fotos muito bem produzidas e mensagens que tentam transmitir uma ideia de sucesso individual.
Neto Ais aparece sempre com o cabelo engomado dentro de carros de luxo, aviões privados, em locações internacionais badaladas e ao lado de astros do futebol e celebridades da música.
Por sinal, um jatinho patrimônio da Braiscompany, que aparece em uma desses posts, teve sua venda para uma empresa de comércio hospitalar do Espírito Santo concretizada na última quinta-feira (9/2) segundo os registros da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Há também em seu perfil no Instagram muitas frases de autoajuda empresarial como “entrar para vencer”, “o medo é um paralisador”, “pare de pensar como pobre”, além de mensagens religiosas (“Deus é meu sócio”; “toda língua que se levantar contra mim Deus condenará”).
Ele reforça também a imagem de “CEO família” com posts ao lado dos filhos e da mulher e cofundadora da Braiscompany, Fabricia Ais.
Pessoalmente, segundo pessoas que travaram contato com ele, Neto Ais exerce magnetismo e mostra poder de convencimento.
“Ele tem sem dúvida um poder de persuasão incrível e uma inteligência acima da média. Bem coisa desses novos líderes da internet, com atributos de coach”, diz Celino Neto, colunista social da região de Campina Grande e influenciador.
Celino afirma que começou o seu contato com Neto Ais ao promover comercialmente eventos da Braiscompany, como a cobertura dos camarotes da festa de São João, e mais tarde aderiu aos investimentos na companhia.
Ele não revela quanto colocou na Braiscompany. “Independentemente de qual é o valor exato, vai fazer falta.”
Apesar de se considerar “extremamente ansioso” com a situação no momento, o colunista social quer “acreditar que vai dar certo”, ou seja, que vai recuperar o dinheiro investido. Ele também ressalta que evita fazer acusações contra Neto Ais porque “ainda não houve um desfecho final”.
“É engraçado isso. Ele [Neto Ais] não vem aparecendo muito, mas, quando aparece, traz esse sentimento [de esperança]. Não sei se é aquele efeito do negacionismo, de encontrar consolo até chegar a etapa de aceitação. Talvez eu esteja vivendo esse looping.”
O investidor que vive em Portugal conta que participou de uma videoconferência reservada para pessoas que transferiram altas somas para a Braiscompany.
“A oratória dele [Neto Ais] era perfeita. O esquema é muito bem montado, parece coisa de produtor de cinema. Faz acreditar que tudo vai dar certo, que você vai ganhar muito dinheiro. Ele todo arrumadinho com o povo em volta dele… parece que você está em uma sala de reunião com o empresário mais forte do mundo.”
Parte da estratégia de construção de imagem contou com informes publicitários centrados no casal Ais ou reportagens de tons elogiosos que enfatizam uma trajetória de superação.
Uma revista diz que o empresário “nascido em Cuité, no Curimataú paraibano [região do semiárido do Estado]” teve uma vida “composta por muitas adversidades.”
“Coube a Antonio cuidar dos irmãos mais novos, enquanto seus pais trabalhavam.”
O texto encerra dizendo que “a Braiscompany e a grande história de sucesso que Antonio Neto Ais e Fabrícia Ais estão construindo, sem sombra de dúvidas, mostram o quanto é possível vencer na vida, seja qual for a circunstância”.
Depois de um período sem se manifestar, Neto Ais fez uma live no Instagram de 45 minutos de duração na última quarta-feira (8/2) em que apresentou suas justificativas para a suspensão de pagamentos de dividendos para os clientes.
Como já havia ocorrido anteriormente, ele culpou a corretora de criptomoedas Binance, a maior do mundo, pelos problemas.
A Binance é uma espécie de bolsa para transações entre diferentes ativos virtuais (por exemplo, bitcoin e ethereum, as duas divisas virtuais mais populares entre as milhares existentes) ou para converter dinheiro convencional em criptos (e vice-versa).
“Nós trazemos o argumento base, verídico, que tem impedido a Braiscompany de seguir suas atividades de forma normal, que tem sido os bloqueios constantes na Binance”, disse Neto Ais.
“Tem sido uma trava sistêmica, global.”
Procurada pela BBC News Brasil, a Binance informou através de sua assessoria de comunicação que “reforça seu compromisso com a proteção e a segurança dos usuários, que são prioridade para a empresa. Além disso, a Binance enfatiza que atua em total colaboração com as autoridades para coibir que pessoas mal intencionadas utilizem a plataforma”.
“A Binance reitera que não realiza quaisquer ações em contas que não sejam devidamente embasadas nos termos e condições, contratos e políticas vigentes e aceitos por todos os usuários.”
O empresário também disse na live que “a Braiscompany vem sendo investigada nos últimos quatro anos. Então, quando as pessoas me mandam matérias falando que [a empresa] está sendo investigada pelo Ministério Público, pela Polícia Federal, Polícia Civil, isso é um processo natural”.
O Ministério Público da Paraíba está investigando o caso após denúncias feitas por investidores. Um processo conduzido pelo o promotor de Justiça de Campina Grande e diretor-regional do MP-Procon, Sócrates da Costa Agra, foi instaurado no dia 26 de janeiro.
Nota divulgada diz que as apurações “avançaram muito nos últimos dias, com informações que elucidam a atividade da empresa Braiscompany e que reforçam a necessidade de judicialização”.
“Esta semana, tivemos acesso a informações importantes e imprimimos um ritmo mais acelerado à apuração. Acreditamos que até a próxima semana, acionaremos a Justiça, na esfera cível. Até agora, tudo corrobora para a necessidade da deflagração de uma ação civil pública, a fim de resguardar os direitos dos consumidores e reparar os danos causados à coletividade”, afirma Agra.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que fiscaliza o mercado de valores, disse apenas que “acompanha e analisa informações e movimentações no âmbito do mercado de valores mobiliários brasileiro, tomando as medidas cabíveis, sempre que necessário. A autarquia não comenta casos específicos”.
No dia 12 de janeiro a CVM recebeu uma denúncia formal contra a Braiscompany. Um processo já havia sido aberto em 2020, depois transferido para o MP.
Segundo o advogado especialista em ativos digitais Pedro Torres, o principal serviço oferecido pela Braiscompany, o “aluguel” de criptomoedas, é proibido pelo Código Civil.
“A redação do artigo 565 proíbe o aluguel de bens fungíveis [aqueles que podem ser substituídos por outros de mesma espécie, qualidade e quantidade]. No Direito brasileiro, criptoativos são considerados bens fungíveis. Por exemplo, 1 bitcoin pode ser substituído por 1 bitcoin.”
“Já por esse aspecto o negócio da Braiscompany é ilegal, proibido por lei.”