A violência contra jornalistas e os ataques contra a imprensa são um problema global. Segundo relatório da UNESCO, na última década houve recrudescimento de ataques contra jornalistas em diversas regiões do mundo. No Brasil, os casos têm aumentado continuamente: entre 2019 e 2020, estima-se que esse tipo de violência aumentou 222%.
Até outubro de 2021, a Abraji já registrou um total de 335 ataques contra jornalistas e organizações jornalísticas, ou seja, uma média de um ataque por dia.
Com a aproximação das eleições no Brasil em 2022, a violência tende a crescer. Isso porque as pautas de cobertura jornalística mais associadas aos ataques costumam ser ligadas justamente à política e eleições, seguidas por checagem de notícias e questões relacionadas a gênero, direitos humanos e políticas sociais. O ano de 2022, portanto, será um cenário desafiador, que exigirá ações do jornalismo, da sociedade civil e dos órgãos de fiscalização e controle do Estado, com destaque para o Tribunal Superior Eleitoral.
Três aspectos do problema chamam atenção e estão relacionados entre si:
Em 2022, o jornalismo deve responder a esses desafios a partir de alguns eixos. Primeiramente, é fundamental traçar bons diagnósticos para formular respostas adequadas. É por isso que a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em parceria com a rede Voces del Sur, monitora ataques contra a imprensa e os jornalistas no Brasil desde 2013.
Em segundo lugar, as organizações jornalísticas devem proteger seus profissionais, seja via treinamento em segurança digital, seja pelo investimento em formação de equipes e adoção de ferramentas tecnológicas de monitoramento e proteção.
Além disso, será necessário apurar com rigor e noticiar os ataques contra jornalistas na própria imprensa como forma de pressionar as plataformas a tomar medidas de punição aos agressores. Considerando o cenário eleitoral que se avizinha em 2022, o papel do Tribunal Superior Eleitoral também será fundamental para coibir a violência como método de fazer política. Especialmente no que diz respeito a fontes de financiamento ilegal de campanhas de desinformação e ataques online, uso irregular de meios digitais em campanhas políticas e violações de direitos e regras eleitorais.
Nesse sentido, no ano que vem a imprensa deve reforçar seu papel como um braço de investigação e denúncia da violência e desinformação online, fornecendo subsídios para ações legais das instituições responsáveis.
No longo prazo, os parlamentares devem ficar atentos a essas movimentações institucionais e discussões da sociedade civil a fim de propor leis e formas de regulação das plataformas digitais. Contudo, o terreno da regulção é extremamente complexo, técnico e pode produzir consequências não intencionais. Apenas para mencionar um exemplo, as mudanças promovidas pelo WhatsApp em resposta à desinformação e violência que abundavam na plataforma foram seguidas de uma migração em massa de políticos e influenciadores de extrema direita para o aplicativo Telegram, uma plataforma sediada em Dubai que não tem respondido às requisições do TSE. Esse e outros casos mostram os limites das soluções via regulação, visto que o ecossistema virtual é extremamente plástico e instável.
Autoritarismo, internet e gênero: três faces da violência contra jornalistas
A Abraji tem demonstrado que as liberdades de expressão e de imprensa deterioraram sob a presidência de Jair Bolsonaro. Entre os 419 casos de ataques registrados no Brasil em 2020, em 74% das vezes os agressores foram atores do próprio Estado, usando seu poder e recursos para impedir que a imprensa exerça seu papel fiscalizador.
O caso brasileiro segue tendências internacionais: um estudo da UNESCO apontou que representantes eleitos e membros de partidos são os principais agressores de jornalistas em diversos países. Mesmo em ataques feitos por anônimos e desconhecidos na internet, tais atores costumam ser os principais instigadores.
Em regimes autoritários ou democracias governadas por líderes de tendências autoritárias, extensas redes de trolls têm sido constituídas e financiadas por atores estatais para atacar jornalistas e estigmatizar a imprensa na internet. Com efeito, em 2020, 37% dos ataques registrados pela Abraji no Brasil ocorreram no meio digital.
Outro aspecto que chama atenção é a questão de gênero: jornalistas mulheres tendem a sofrer os ataques mais virulentos.
Estudos nacionais e internacionais confirmam que mulheres são as mais assediadas no ambiente online, além de experimentar formas mais graves de assédio. Em sociedades conservadoras, atacar a moral da jornalista mulher é uma forma de minar a confiança do público no jornalismo e nos fatos em geral. A violência coloca em risco não apenas a jornalista, mas também suas fontes e seus familiares, e pode transbordar para o ambiente offline, pois frequentemente os agressores expõem sua movimentação diária e seu endereço profissional ou residencial.
O caso mais emblemático, que reúne esses três aspectos, é o de Patricia Campos Mello, repórter que foi alvo de ataques massivos na internet em 2018 após assinar a reportagem “Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp”. Campos Mello revelou que, durante as eleições, Jair Bolsonaro se beneficiou de um amplo esquema ilegal de mensagens financiado por empresas. Como resultado, foi bombardeada com cerca de 220 mil mensagens de mais de 50 mil contas diferentes do WhatsApp. Foi acusada de sugerir troca de informações por sexo, teve fotografias manipuladas e sua moral atacada. Foi também alvo de ameaças de morte, dirigidas contra seu filho de 6 anos à época.
As próprias organizações de imprensa têm pressionado jornalistas a ter presença nas redes sociais digitais, o que borra cada vez mais as fronteiras entre vida privada e profissional. À medida que as notícias passam a ser cada vez mais associadas pessoalmente aos jornalistas e menos às organizações jornalísticas, o ataque à reputação do(a) jornalista torna-se a forma mais fácil de tirar a credibilidade da notícia.
Isso conduz novamente à pergunta: quais ações podem ser efetivas no combate à violência contra jornalistas no ano que se avizinha?
Dentre as plataformas utilizadas para os ataques, destaca-se o Facebook, seguido por WhatsApp, Twitter, Youtube e Instagram. Além disso, no momento o aplicativo Telegram está em ascensão. Pesquisas identificam o forte uso de robôs, o que imprime um caráter massivo aos ataques, tornando impossível reagir individualmente. Assim, os casos requerem respostas institucionais. As maiores dificuldades no enfrentamento do problema estão no fato de que, na economia das redes sociais, o assédio pode ser rentável, se traduzindo em curtidas e cliques e, portanto, em lucro.
O modelo de negócios e design de produto das plataformas favorece essas ações, a exemplo das hashtags no Twitter e das ferramentas de impulsionamento no Facebook. A própria lógica algorítmica das plataformas incentiva tais conteúdos, pois eles têm mais chances de se propagar. Apesar disso, as gigantes da tecnologia se escoram no discurso da liberdade de expressão para se eximir da custosa responsabilidade de investir em moderação e regulamentação de conteúdo em suas redes.
Geralmente, a resposta das plataformas depende da atenção que o caso recebe na mídia. Por isso, em 2022, é importante que a imprensa continue noticiando os ataques contra seus profissionais. Será fundamental também pressionar as plataformas para que empreguem mais moderadores com treinamento em direitos humanos, igualdade de gênero e liberdade de imprensa. Essas empresas devem revisar continuamente suas políticas, algoritmos e processos de moderação, pois os ataques estão em constante evolução. É preciso haver formas de penalizar agressores reincidentes, seja via suspensões temporárias ou banimentos permanentes.
Além disso, há algumas precauções que os jornalistas podem tomar: usar ferramentas de trabalho seguras e encriptadas, criar contas pessoais e profissionais separadas, apagar suas informações pessoais em sites e reportar os ataques à sua organização e à polícia. Já as organizações jornalísticas podem adotar ferramentas tecnológicas de moderação automática, softwares de identificação de ataques e contratar pessoal para administrar contas de jornalistas sob ataque, a fim de registrar evidências para ação legal futura. As organizações de mídia podem ainda criar diretrizes e oferecer treinamento para novos funcionários em segurança digital.
Alterações legislativas e medidas jurídicas de regulação também serão bem-vindas, visto que seu impacto potencial é muito maior do que respostas individuais ou organizacionais. Contudo, tais processos são complexos e devem ser pensados como soluções de longo prazo.
Considerando o cenário eleitoral de 2022, destaca-se sobretudo o papel fundamental do Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabe fiscalizar, examinar as contas e julgar crimes eleitorais. O TSE possui tanto as atribuições como os instrumentos necessários para coibir o uso da agressão e violência nas eleições de 2022. Ao jornalismo, por sua vez, cabe formar equipes para monitorar as redes, incentivar reportagens investigativas a respeito dos ataques e desinformação online, ao mesmo tempo que é necessário proteger os jornalistas.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022.
Veronica Toste é professora ajunta de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).