LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando os Racionais MCs lançaram “Sobrevivendo no Inferno”, em 1997, uma nova era da música -e da cultura- brasileira estava sendo inaugurada. “Como disse o Emicida no livro, é um cavalo de pau na música brasileira que os caras dão”, diz Arthur Dantas Rocha, autor do novo volume da série “Livro do Disco”, sobre o terceiro álbum do quarteto paulistano de hip-hop.
Àquela altura, os Racionais já eram celebrados e reconhecidos nas periferias, mas ainda não haviam passado “da ponte para lá”. Foi com “Sobrevivendo no Inferno” que o grupo chegou à MTV e viu “Diário de um Detento” se tornar um hit, com uma produção original não só do ponto de vista artístico, mas de produção -tudo era feito de maneira independente, da produção à distribuição das centenas de milhares de discos vendidos.
“Acho que até então, se você pensa na história da música brasileira, não tem uma postura tão afrontosa quando você lida com a questão racial”, diz Rocha. “Mesmo no samba, é uma questão que aparece -o orgulho racial sobretudo-, mas não tem isso que os Racionais trazem para a música. É a primeira vez.”
Nas letras, os “quatro pretos mais perigosos do Brasil” faziam um retrato vívido do que é ser negro e periférico e viver em meio à necropolítica, guerra às drogas e abandono do Estado. Isso tudo num contexto de ascensão do neoliberalismo no Brasil e numa época em que bairros da zona sul de São Paulo eram apontados como alguns dos mais violentos do mundo.
“Os Racionais aliam consciência de classe e consciência racial. Isso é algo que distingue bastante o grupo. A separação de classes estar ligada com o racismo na sociedade brasileira, isso é bastante novo na música. Eles que estabelecem essa interseccionalidade.”
Explorando o dialeto das periferias paulistanas, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay criaram uma obra tão forte que se tornou modelo, a “Bíblia”, do rap nacional. “Vira um farol de como se dizer as coisas. O próprio Brown até fala que esse disco, de certa forma, também se tornou uma armadilha, porque criou um jeito de se fazer as coisas que foi repetido à exaustão. Algo que era muito novo acabou virando um modelo.”
Além de posicionar o quarteto -principalmente Mano Brown- como poetas de sensibilidade aguçada, o livro também desmistifica algumas teorias. Esse é conhecido como o “disco evangélico dos Racionais”, mas apesar de símbolos como a cruz na capa, a religiosidade apresentada na obra não é tão simples assim.
“É uma religiosidade conflituosa. Você tem momentos de uma espiritualidade que aparece nos moldes da religiosidade evangélica, momentos de uma religiosidade católica e outros, como na abertura de ‘Jorge da Capadócia’, com menção a religiões de matriz africana. Mais do que o sincretismo, isso dá um caráter conflituoso.”
Essa “confusão” também espelha a postura de Brown, que quebra a imagem do “professor autoritário” do rap, como diz Rocha, para encarnar a figura do amigo que estende a mão -e dá algumas broncas de vez em quando. “É a confusão sentimental que uma pessoa periférica vive.”
Rocha ainda analisa o disco -e a postura do grupo nas letras- como tentativas de lidar com os traumas do racismo e da classe social –algo que, diz, talvez nem a psicanálise não tenha ferramentas para enfrentar. “Acima de tudo, é um guia de sobrevivência mesmo. Traz dicas, modos de vida exemplares para você atravessar esse inferno da vida real, que é a vida nas periferias do Brasil.”
Um exemplo da capacidade do grupo de criar histórias ricas e verossímeis é que o próprio Brown foi várias tido como ex-presidiário, o que ele nunca foi, e o personagem Guina, da música “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”, ganhou vida por um aproveitador.
“É só pensar no fenômeno do Guina, um cara que usa esse nome e se apresenta em igrejas evangélicas Brasil afora como se fosse de fato o personagem -que é fictício. Ou seja, aquilo que eles mostram é tão veemente e tão verdadeiro que tem pilantra que vive como se fosse um personagem da música.”
Hoje obra obrigatória no vestibular da Universidade Estadual de Campinas, no interior paulista, um dos mais importantes do país, o disco foi inovador não só no discurso, mas especialmente na estética. Rocha dedica espaço para contextualizar minuciosamente a escolha dos samples -de Isaac Hayes, Sade ou Djavan- e como a criação daquelas bases instrumentais dialogam com tudo que o álbum se propõe a ser.
“Os Racionais estão dentro de uma certa tradição de culturas afrodiaspóricas de criar conexões entre gerações. E eles fazem isso com um engenho estético absurdo. Não tentei fazer paralelos com o rap americano até então. Tentei mostrar a originalidade que eles trouxeram para a produção do rap. Para mim, os Racionais são bons de rap em nível global.”
O livro também traz vários exemplos para pensar a recepção da imprensa aos Racionais. Hoje, o rap é entendido como um gênero musical mas, nos anos 1990, nem essa noção básica era algo estabelecido. Essa relação entre o jornalismo e o rap do grupo, diz Rocha, era de “condescendência, tipo ‘olha o que esse pessoal da periferia faz'” ou de “embate direto, de se opor ao que era apresentado”.
“Essa parte do livro deixa bem claro o impacto que eles tiveram em tempo real. A postura que a imprensa tomou para lidar com os Racionais era de uma assombro –e muitas vezes de racismo declarado. Não sabiam como lidar com aquilo, foi um fenômeno muito novo na música.”
Rocha vê Brown como “a maior voz poética da música brasileira dos últimos 30 anos” e dá um exemplo de como as músicas de “Sobrevivendo no Inferno” não pararam, até hoje, de fazer sentido. “Quando coloquei o ponto final no livro, passou um carro com som superpotente na rua gritando ‘Capítulo 4, Versículo 3’. Continua tocando até hoje.”
“Não tem nenhum outro disco na história recente do país que se torne uma obra tão lapidar como o ‘Sobrevivendo no Inferno’. A diferença é que, em tempo real, ele causou uma recepção meio, digamos, exótica de quem era da ponte para lá. Mas hoje é um marco cultural da vida brasileira.”