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Estelionato sentimental: golpistas roubam sonhos e dinheiro em aplicativos de relacionamento
13/02/2022 / 11:38
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Em setembro de 2019, Márcia Tripode, de 34 anos, conheceu A.T., 45, pelo aplicativo de relacionamentos Tinder. Ele se dizia agente da Polícia Federal, licenciado para cuidar do pai doente. Após cinco meses de conversas, fotos e galanteios, ela aceitou encontrá-lo no início de 2020, pouco antes da pandemia.

Dona de um pequeno e-commerce, divorciada e mãe de uma criança de 5 anos, Márcia fazia suas próprias entregas e recebia os pagamentos em dinheiro. Educado, gentil e solícito, A.T. passou a dizer que ela deveria se proteger e arrumou um motorista “de confiança” para fazer o trabalho. Recomendou ainda que ela não deixasse dinheiro em casa e se ofereceu para que tudo fosse guardado em um cofre dele.

Com os pagamentos sob seu controle, o namorado nunca repassava os valores totais. Se a venda era de R$ 10 mil, entregava R$ 4 mil e o resto guardava. Convenceu Márcia a fazer um empréstimo através da mãe dela para comprar um caminhão, que acabou no nome dele. Quando era cobrado, se exaltava. Ela só percebeu o golpe quando o prejuízo alcançava R$ 338 mil. Bastou exigir que os valores das vendas passassem a ser depositados em sua conta para o romance acabar. Para reaver o que perdeu, Márcia foi à Justiça.

Assim como no documentário “O golpista do Tinder”, sucesso na Netflix sobre o israelense expulso do aplicativo após fingir ser filho de um magnata de diamantes para roubar US$ 10 milhões de mulheres, A.T. valeu-se de uma “farsa romântica”. Usou uniformes similares aos da PF, exibiu armas e fez Márcia, então sozinha, se sentir protegida e confiante.

— Posso até não receber tudo o que me levou, mas quero que ele nunca mais consiga repetir isso — diz ela.

No Brasil, o golpe nos aplicativos de paquera é conhecido como estelionato sentimental. A promotora Fabíola Sucasas, do Ministério Público de São Paulo e auxiliar da Presidência do Conselho Nacional do Ministério Público, observa que o crime tem um recorte de gênero, já que muitas mulheres ainda sonham com um “príncipe encantado”:

— Com a promessa de que a fará feliz, o príncipe se mostra um sapo. O problema é que há uma deturpação e acaba por se culpabilizar mais a vítima do que o golpista.

O estelionato sentimental não está descrito no Código Penal. Por isso, não há estatísticas nacionais. Em 2019, a revista digital Gênero e Número verificou que, entre 2014 e 2018, houve aumento de 253% nas ocorrências policiais envolvendo aplicativos de relacionamento em São Paulo, o estado mais populoso do país. Em 2018, a cada três dias, uma ocorrência havia sido registrada nas delegacias. A Delegacia Antissequestro do Departamento de Operações Policiais Estratégicas da Polícia Civil de São Paulo prendeu mais de 100 criminosos ligados a esse delito em 2021.

No ano passado, golpes e fraudes pela internet representaram 17,3% dos atendimentos feitos pelo canal Helpline, mantido pela ONG SaferNet Brasil para orientar sobre uso seguro da internet. Foram 211 queixas, atrás apenas de problemas com dados pessoais (339 casos) e exposição de imagens íntimas (273).

No Congresso Nacional, dois projetos de lei, que estão parados, pedem a inclusão no artigo 171 do Código Penal do “estelionato afetivo ou sentimental”, quando a fraude é praticada em decorrência de relacionamento no intuito de “dissimular, extorquir, enganar, ludibriar ou induzir a outra parte a erro”.

— É importante nominar os crimes para referenciar os bancos de dados policiais, gerar estatísticas e políticas públicas de enfrentamento — destaca a promotora.

Para o advogado Anderson Albuquerque, há uma falsa percepção de que apenas mulheres são vítimas de estelionato sentimental. Segundo ele, no mundo virtual, toda pessoa carente e fragilizada que se expõe em busca de afeto está suscetível a este tipo de violência. Também não ocorre apenas com pessoas ricas. A diferença está na possibilidade de acesso à Justiça.

— É mais difícil que um homem reconheça ser vítima. Embora aconteça muito, o machismo costuma ser entrave para ele admitir — afirma Albuquerque.

Os golpistas estudam o perfil da vítima e se moldam para incorporar a figura que ela idealiza como parceiro até dominar a situação. Só então começa a agressividade e a busca pela maior vantagem financeira no menor tempo possível, explica Albuquerque.

— Não é a vítima que é ingênua e se deixou enganar. O golpista que é profissional. Ele estuda a vida e escolhe quem vai atacar.

Quadrilhas e perfis falsos
Há também quadrilhas nos aplicativos. Em geral, usam nomes falsos e fotos extraídas de perfis abertos do Instagram ou Facebook. Nos aplicativos de relacionamento, o golpista se mostra bem-sucedido e de boa aparência. Não raro, como estrangeiro.

A., de 50 anos, foi uma das vítimas de quadrilha. Ficou feliz quando conheceu pelo Tinder o suposto piloto de uma companhia aérea norte-americana, morador do Texas, que se identificava como Albert Paul Chester. Era março de 2020. Logo ele disse que teria de ir à Venezuela, onde daria cursos, e que mandaria para o Brasil uma caixa com presentes.

Pouco depois, uma empresa de transporte entrou em contato com A., informando que a caixa havia sido apreendida, pois trazia dólares que ultrapassavam o valor permitido.

Chester disse a A. que o dinheiro seria usado para iniciar um negócio no Brasil, onde pretendia se estabelecer. A partir daí, ela passou a receber cobranças de taxas para liberar a encomenda. Pagou todas, até que Chester disse que estava vindo ao Brasil. Mais uma surpresa. Na “chegada” a Brasília, ele teria sido detido pela Polícia Federal por trazer dólares não declarados — e enviado para o Reino Unido. A. pagou até fiança para soltá-lo. Gastou cerca de R$ 500 mil e chegou a receber documentos falsos indicando depósitos num banco suíço que seriam destinados a ela.

Informações: O Globo