O ano de 2022 será especialmente desafiador para professores e estudantes do ensino médio. O principal motivo é que, além de ter de enfrentar os problemas ocasionados pela Covid-19 em todas as etapas do ensino, com quase dois anos sem aulas presenciais, os alunos terão de lidar com o primeiro ano de implantação do novo modelo de ensino médio. Ao lado de lacunas na aprendizagem, evasão e currículo novo, as escolas ainda têm dúvidas sobre a melhor divisão das aulas e o que será cobrado nos vestibulares e nas próximas edições do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Mesmo com um exército de professores indo para a linha de frente virtual e a maioria das redes de ensino ter oferecido não só um ensino online, mas também através de TV, rádio e materiais didáticos, nunca é a mesma coisa que as aulas presenciais. Não houve o professor disponível frente a frente e nem o aprendizado que acontece entre colegas. De fato, 2022 vai ser um ano muito difícil”, resume a diretora do Centro de Inovação e Excelência em Educação da Fundação Getulio Vargas (Ceipe/FGV), Claudia Costin.
Tradicionalmente, mesmo sem pandemia, o ensino médio já é um calcanhar de Aquiles para a educação brasileira. Enquanto em outras etapas de ensino o país alcançou melhoras significativas, no ensino médio o que se vê é uma estagnação desde 2005. De lá para cá, o incremento nas notas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) tem sido pífio.
Na edição 2017 do Saeb, por exemplo, 60,5% dos alunos que estavam concluindo o 9º ano do ensino fundamental e entrando no ensino médio tiveram conhecimento insuficiente em português e 63,1%, em matemática. Em 2019, os resultados continuaram ruins, com uma leve melhora. Na prática, isso significa que os alunos já chegam ao ensino médio com aprendizagem deficitária, o que prejudica o acompanhamento das aulas e assimilação dos conteúdos. Para quem vai começar essa etapa em 2022, essas deficiências serão ainda mais evidentes.
O ensino médio também é conhecido pela alta evasão escolar, que já era elevada mesmo antes da pandemia. Segundo o Censo Escolar 2020, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), enquanto até 99% das crianças entre 6 a 14 anos foram matriculadas na escola, a partir dos 15 anos esse índice cai drasticamente. Em 2020, 78% dos jovens de 17 anos, idade que normalmente coincide com o final do ensino médio, estava matriculada em uma escola.
E esses números se referem apenas às matrículas feitas no início do ano. Devido à pandemia, o índice de abandono escolar também aumentou bastante, em todas as etapas. Segundo estimativa de um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), apenas no primeiro ano da pandemia, concluído em novembro de 2020, a evasão escolar aumentou pelo menos 12% no Brasil.
Já um levantamento feito pela Fundação Lemann, Itaú Social e BID, divulgado em junho desde ano, mostra que 40% dos estudantes brasileiros correm risco de sair da escola. Falta de motivação, dificuldades com o sistema de ensino remoto, falta ou dificuldade de acesso à internet, fundamental para acompanhar as aulas online e problemas financeiros seriam os principais motivos para crianças e jovens abandonarem a escola durante a pandemia.
Esse cenário já se apresenta como desafiador, mas com o início da implantação do chamado “Novo Ensino Médio”, pode ser ainda mais complicado. Fruto da Medida Provisória (MP) 746/2016, posteriormente convertida na Lei 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Novo Ensino Médio já está trazendo grandes mudanças estruturais nessa etapa do ensino. E escolas e estudantes terão de se esforçar para se adaptar.
O novo modelo prevê maior carga horária, com acréscimo de pelo menos uma hora diária, que será ocupada com disciplinas obrigatórias, comuns a todos os alunos, e também por itinerários formativos. O próprio estudante poderá escolher se aprofundar em um dos cinco campos listados pelo projeto: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e, por fim, formação técnica e profissional. A implantação do modelo será gradual. Em 2022 será oferecido apenas o 1º ano do ensino médio no novo sistema, em 2023 será expandido ao 2º ano e em 2024 abrangerá todas as séries da etapa.
“Não vai ser uma implementação fácil, mas é importante lembrar que os desafios do ensino médio já eram imensos antes disso tudo. O antigo ensino médio comprimia em 4 horas e meia de aula em 13 disciplinas obrigatória, o que significava, na prática, que nós tínhamos só um verniz de cada disciplina”, diz Claudia Costin.
Já para o professor e ex-presidente do Conselho Nacional de Educação, Eduardo Deschamps, o Novo Ensino Médio deixa de focar apenas no conteúdo. “A filosofia do ensino médio não vai mais ser ‘conteudista’, mas sim focar no desenvolvimento de competências, valores e habilidades. Em relação aos professores, eles vão ter de trabalhar a aprendizagem baseada em projetos e não apenas em conteúdos”, avalia.
Para Deschamps, mesmo com todas as dificuldades logísticas que devem surgir para implantação do modelo, ele poderá ser usado também para recuperar as perdas de aprendizagem decorrentes da pandemia. “Entendo ser viável iniciar nesse modelo já pensando na recuperação dos alunos. Claro, isso também depende da forma como os professores irão trabalhar”, diz.
Claudia Costin lembra que algumas redes de ensino a partir do ano que vem vão passar a adotar o ensino médio em regime integral, o que vai dar mais tempo para a eventual recuperação e nivelamento dos alunos. Além disso, explica ela, há outras iniciativas que já vem sendo planejadas, como a das redes públicas de São Paulo e Rio Grande do Sul, que apostam na realização de “cursos de férias” que funcionarão como um complemento ou reforço dos conteúdos.
Outra ideia é a adoção de um “4º ano” do ensino médio, voltado para os estudantes que estão concluindo a etapa em 2021. Seria um ano letivo adicional e opcional, voltado para os estudantes que não se sentem preparados para fazer o Enem ou prestar vestibular. “Não vai ser um esforço fácil, mas é muito importante que possamos recuperar as perdas de aprendizagem dos nossos jovens que foram, infelizmente, imensas”, afirma a especialista.
Mas, antes de recuperar a aprendizagem, será preciso trazer de volta os jovens para a escola. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) vem coordenando um esforço nacional de busca ativa para contatar esses jovens que deixaram a escola. Além das dificuldades de acesso às aulas online, muitos sentiram que simplesmente não estavam aprendendo e por isso abandonaram os estudos. Outros ainda tiveram de deixar a escola de lado para tentar auxiliar na renda familiar.
“É fundamental acelerar e tornar obrigatório o retorno das aulas presenciais onde ainda não houve retomada total. Sem isso, não há mecanismos hábeis para o combate ao trabalho infantil”, diz Claudia Costin.
Um dos pontos que se evidenciou durante a pandemia foi a dificuldade de os estudantes se adaptarem ao modelo de ensino remoto, que exige um grande comprometimento, motivação e resiliência. Nesse sentido, avaliam os especialistas, trabalhar com o desenvolvimento de um “projeto de vida”, como prevê o Novo Ensino Médio, poderá ser benéfico. Como explica Deschmps, o novo modelo prevê maior protagonismo e autonomia para os estudantes, o que pode ter impacto positivo na motivação para os estudos.
Esse mesmo protagonismo, diz ele, é motivo de insegurança para os pais, que têm medo de que os filhos não estejam preparados para escolher, por exemplo, quais itinerários educativos ou disciplinas optativas cursar durante o ensino médio. Segundo ele, a ideia é que no primeiro ano da etapa sejam feitas apenas “pequenas escolhas” que sirvam como preparo para as escolhas seguintes.
“O que se pretende é trabalhar com projetos de vida. Ao longo dos três anos, a escola vai auxiliar o estudante a fazer esse projeto. A cada semestre o aluno fará pequenas escolhas, sendo orientado pela escola e desenvolvendo o autoconhecimento, e assim se preparando para realizar seu projeto de vida, fazer uma faculdade, trabalhar”, diz Deschamps.
Para ele, nesse primeiro ano do Novo Ensino Médio, será importante que todas as escolas envolvam os pais e familiares no processo. “As escolas e professores terão de explicar aos pais como será o processo, demonstrar como será na prática, apresentar as possibilidades trazidas pelo novo modelo. E a escola também terá de escutar os pais continuamente. Apenas assim será possível afastar as preocupações”, avalia.