Este é o único exemplar deste ano e modelo emplacado no Brasil, que apodrece exposto ao sol e à chuva – o carro hoje está bloqueado judicialmente. O empresário Bruno Lazar, de 36 anos, filho de Ferry Lazar, antigo dono do esportivo italiano, busca a liberação da Ferrari na expectativa de reformá-la. Seu pai morreu aos 64 anos em 2014, quando ainda tentava reaver o veículo.
Por conta da longa exposição aos efeitos do clima, a Dino 208 está corroída pela ferrugem, mas poderia ser salva. Nos últimos dez anos, seu preço no mercado internacional só tem aumentado.
“Quero muito salvar a Ferrari e resgatar essa lembrança de 25 anos atrás, quando eu andei com meu pai na Avenida Paulista exatamente nesse carro”, conta Bruno, que mora na capital paulista e hoje busca na Justiça a liberação do veículo.
Segundo o youtuber britânico Scott Chivers, do canal Ratarossa, especializado em restaurações de modelos da marca italiana, a 208 Dino ainda é estigmatizada por entusiastas, que não a consideram uma Ferrari legítima, mas na última década os preços do veículo só têm aumentado.
“Esse modelo já foi chamado de ‘Ferrari de pobre’. Há uma década, custava entre 10 mil e 15 mil libras [de RS 64,2 mil a R$ 96,3 mil na conversão direta]. Hoje, os preços vão de 48 mil a 55 mil libras [R$ 308,2 mil até R$ 353,2 mil], aproximadamente”, conta Scott para nossa reportagem.
“É um carro extremamente colecionável, pois apenas 840 exemplares foram fabricados. A produção foi menor do que a da F40, uma das Ferraris mais cobiçadas e exclusivas”.
Chivers destaca que a Dino 308 GT4, que tem motor maior e basicamente é o mesmo carro, tem atingido preços estratosféricos para os padrões brasileiros.
“Uma 308 GT4 1979 foi leiloada recentemente por US$ 225 mil [cerca de 185 mil libras ou R$ 1,19 milhão]”, diz o youtuber.
Bruno Lazar conheceu o pai apenas quando tinha quatro anos de idade e não morou com ele.
O empresário relata que o convívio com o pai era esporádico e os dois se viam “no máximo” duas vezes por ano. Seus pais nunca foram casados e Bruno diz ser o único filho de Ferry, que era engenheiro mecânico e nasceu na Romênia.
“Nunca vivemos juntos, isso era um sonho na época para mim” afirma o empresário.
Foi inclusive por conta da Ferrari que Bruno soube da morte do pai, em 2018, quase cinco anos após seu falecimento.
“Foi um choque para mim. Soube da morte dele através do carro. Uma pessoa veio querendo comprá-lo, mandou mensagem no Facebook e disse que meu pai já tinha falecido. Nesse mesmo dia, consegui confirmar por conta própria ao descobrir a certidão de óbito em um cartório perto de onde ele morava, em Santana [bairro da Zona norte da capital paulista]”, relembra.
Bruno considera Ferry um gênio incompreendido e relembra a participação do pai no programa “Ídolos” (SBT), quando ele foi reprovado pelos jurados ao cantar uma versão da música “Surfin’ Bird”, há quase 17 anos.
“Ali a gente vê as sequelas de uma série de internações em manicômios públicos por opção da família dele. Eu não concordava com isso. Eles tratavam o Ferry como um louco, mas na verdade ele era uma pessoa acima da média. O QI dele era absurdamente alto”, opina.
Ele conta que o pai “mandava teorias para a Nasa”, fazia projetos de aeromodelismo e chegou a ser condecorado por projetar um aeromodelo “que atravessou Israel de ponta a ponta”. A família de Ferry Lazar tem origem judaica.
Dentre as lembranças que Bruno guarda está o passeio que fez com o pai a bordo da Ferrari na Avenida Paulista quando era adolescente.
Ele relata não ter fotos do veículo.
“Foi a última vez em que vi o carro andando, praticamente novo, com tudo funcionando. Ele ficou com a Ferrari parada durante anos atrás de peças. Tinha um componente que quebrou e demorou muito tempo para chegar”, recorda.
De acordo com o documento da Polícia Civil, a Ferrari foi apreendida em Santo André por suspeita de adulteração de chassi, após denúncia feita pelo próprio Ferry em 2006.
O boletim diz, com base em relato do romeno, que a Dino desapareceu em 2002, após seu proprietário deixar o veículo em uma oficina mecânica para reparos em fevereiro daquele ano. Algum tempo depois, ele retornou ao estabelecimento, que havia fechado, e não conseguiu mais contato com o dono da oficina.
Foi então que teve início a busca pela Ferrari sumida, que se estendeu por cerca de quatro anos – até Ferry supostamente localizar a 208 GT4 com nova pintura, registrada em nome de outra pessoa e com numeração de chassi e placas diferentes.
“Em 2006, meu pai descobriu a existência de uma Dino 208 GT4 1975 com pintura amarela, enquanto o carro dele tinha originalmente carroceria azul-escura. Ele estava convencido de que se tratava da sua Ferrari”, diz Bruno, com base em relato do advogado do pai, que acompanhou toda a saga.
Segundo o filho, Ferry soube, por meio das próprias investigações, que a Ferrari estava estacionada no interior de uma fábrica do então novo “dono” do modelo italiano.
“Disfarçado com uma peruca e usando óculos escuros, ele começou a ir até a fábrica e fez amizade com o porteiro. Um dia, convenceu o funcionário a deixá-lo entrar, quando finalmente encontrou a Ferrari e chamou a polícia”, conta.
Foi então que Ferry e o novo “proprietário” foram parar no 1º DP de Santo André e a polícia apreendeu o carro para perícia do Instituto de Criminalística.
Bruno diz, sempre com base no depoimento do advogado que representou seu pai, que em dado momento Ferry Lazar teria conseguido provar que o automóvel lhe pertencia, de fato.
“A polícia enviou uma carta à Ferrari na Itália, pedindo os dados do automóvel. Na resposta, os códigos do motor e do câmbio batiam com aqueles informados pelo meu pai. Só o chassi era diferente. Um perito removeu parte da pintura para verificar se a tinta azul permanecia sob a amarela, mas a cor original tinha sido totalmente removida”.
A “prova dos nove”, explica, foi uma gambiarra que o pai fez no velocímetro.
“Ao fazer o reparo, ele não tinha a peça original e improvisou com um parafuso muito específico. Ele contou isso aos policiais, que desmontaram o painel e encontraram o tal parafuso, confirmando a veracidade da história”.
Bruno Lazar afirma que seu pai só não conseguiu resgatar a Dino porque ainda havia pendências quanto à importação. Ferry teria trazido o esportivo do Paraguai, cruzando a fronteira com o Brasil dirigindo o veículo, supostamente sem pagar os respectivos impostos e taxas.
“Na época, o valor devido era relativamente baixo. No entanto, ele havia sido interditado judicialmente pela família e não tinha acesso ao próprio dinheiro. O processo todo demorou muito e ficou mais doente ainda. Acabou morrendo sem ter a Ferrari de volta”.
A Dino mantém motor e câmbio, bem como volante e todos os itens de acabamento interno, nas durante todo esse tempo os carburadores foram roubados. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, o restauro da Ferrari deixada para enferrujar pode custar mais de R$ 1 milhão.
O nome Dino estreou nos carros de competição da marca no fim dos anos 1950, como homenagem a Alfredo, filho de Enzo Ferrari que morreu em 1956.
Em 1968, a Ferrari lançou a Dino 206 GT, primeiro carro de passeio a trazer a nomenclatura.
Era um modelo mais compacto e acessível, então o único equipado com motor 2.0 V6, instalado entre os eixos na traseira – pequeno para os padrões da marca.
O propulsor da primeira Dino, inclusive, era fabricado pela Fiat, o que levou muitos puristas a não considerá-la uma Ferrari legítima.
De fato, tratava-se do único carro da empresa de Maranello a não trazer o logotipo do cavalo empinado no capô. O panfleto publicitário da novidade, inclusive, reforçava essa imagem: “Compacta, brilhante, segura… Quase uma Ferrari”.
A 208 GT4, lançada em 1975, trocou as linhas sinuosas desenhadas pela Pininfarina por um desenho mais reto, assinado pelo estúdio Bertone.
Foi concebida para o mercado italiano, portanto, é raro se se ver uma em outros países.
A 208 GT4 traz uma versão compacta do motor V8 utilizado na Dino 308 GT4, com cilindrada reduzida de três para dois litros. Ambas foram as primeiras Ferraris com um V8 central – configuração utilizada até hoje.
Quando nova, a Ferrari de Santo André rendia 172 cv de potência e a velocidade máxima era de 220 km/h. Sua cabine tem quatro assentos.