Antes de a Rússia invadir a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, muitos especialistas apostavam que a guerra poderia acabar rapidamente, diante do poderio militar do presidente Vladimir Putin. A capital, Kiev, poderia cair em questão de dias, disseram as autoridades de inteligência dos Estados Unidos. Hoje, completando um mês do início do conflito, as forças russas enfrentam dificuldade para avançar no território ucraniano.
A superioridade do exército russo perante as forças ucranianas é indiscutível. No início da guerra, a Ucrânia dispunha de 219 mil soldados em suas tropas ativas, contra 840 mil militares russos. Aeronaves de combate eram 170 ucranianas diante de 1.212 da Rússia. Em 2021, enquanto a Ucrânia disponibilizou US$ 4,1 bilhões em orçamento militar, os russos investiram US$ 45,3 bilhões.
Ainda assim, “já existe um razoável consenso, seja da comunidade acadêmica, seja inclusive das lideranças políticas de outros países, de que houve uma frustração na expectativa da condução da guerra” por parte da Rússia, analisa a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Barbara Motta.
Mesmo com as diferenças entre os exércitos dos dois países, a Ucrânia tem conseguido postergar o avanço russo, com grande adesão de civis na luta e apoio do Ocidente.
“A Rússia imaginou que ela poderia fazer um ataque rápido. Que a Ucrânia não teria forças adequadas para a resposta e que o Ocidente, em geral, não voltaria sua atenção ou não assumiria custos para ajudar a Ucrânia”, explica o professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) Lucas Leite.
Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra, discorda. “Não acho que está lento. Acho que está moderado. Acho que a Rússia não se engajou na guerra com todo o seu poderio, de cara.”
“Pode ser um erro de cálculo, sem dúvidas, mas me parece que foi voluntário. A Rússia escolheu não entrar com todo o poderio dela”, complementa a professora.
Apesar das divergências, os especialistas concordam que a resistência ucraniana tem conseguido impor dificuldades a Putin. Nesta semana, a parte oeste de Kiev, que dias atrás aparentava ser uma posição tomada pelos russos, retornou ao controle dos ucranianos.
O principal questionamento é: além da resistência, quais são as maiores dificuldades russas neste momento?
Embora a Rússia disponha de alternativas para intensificar ainda mais o conflito, “o custo político, social e econômico de uma guerra é muito alto. Mobilizar tropas é algo muito custoso também”, destaca Leite.
Já na avaliação de Kalil, a Rússia enxerga o confronto como uma guerra de longo prazo. Segundo ela, estamos diante de uma “guerra híbrida” que teria começado ainda em 2014, por meio de guerra cibernética, de informação e irregular (com uso de forças paramilitares). O que vimos há um mês teria sido o início da guerra convencional, com ataques diretos, utilizando armas de fogo.
No sentido de enxergar a guerra no longo prazo, “se a Rússia entrasse com todo o seu poderio, e isso não resolvesse, ela teria um custo muito alto, não teria alternativas”, avalia a especialista.
Para Barbara Motta, o conflito saiu do que era para ser uma “guerra rápida” para uma “guerra muito mais de atrito. Então uma guerra que é vencida, quando é vencida, pouco a pouco – pequenas localidades, pequenas cidades”.
Outro ponto importante levantado pelos especialistas é a configuração atual das forças russas.
“O exército russo é composto por soldados muito jovens, por soldados que, na sua grande maioria, não sabiam que estavam indo para um conflito, e muito soldados que não são etnicamente russos”, ressalta Motta.
O professor Leite analisa a situação de maneira semelhante. “A gente está falando de um exército novo que, sim, é bem equipado, é moderno, e tudo mais, mas que não chega perto do que foi o exército, por exemplo, soviético, em termos de capacidade e mobilização.”
Mesmo com um exército menor e com menos recursos de guerra, a avaliação de Leite é de que os ucranianos investiram no setor militar nacional nos últimos anos.
“Desde 2014, com a Euromaidan, a gente teve uma renovação das forças armadas ucranianas. Houve muito investimento ocidental, por exemplo; houve muita compra de armamento do Ocidente pelos ucranianos; houve transferência de tecnologia, em alguns casos. Então a gente está falando de um país que tentou se preparar para a possibilidade de um conflito”, disse.
Para Mariana Kalil, também há indícios de que Putin esperava que as forças ucranianas se renderiam de imediato. Segundo ela, houve uma “inteligência equivocada de que as forças armadas talvez fossem ceder rapidamente a uma intervenção russa, dar o golpe e negociar com ele [Putin]”.
Desde que o presidente russo autorizou o que ele chama de “operação militar especial” na Ucrânia, diversos países do Ocidente declararam apoio ao país.
A ajuda ocidental se reflete, principalmente, no envio de armamentos para a Ucrânia, aplicação de sanções à Rússia e acolhimento de refugiados ucranianos – que, segundo a ONU, superam os 3,5 milhões.
O apoio do Ocidente tem sido fundamental para a Ucrânia conseguir resistir, mas a professora Kalil alerta para a possibilidade desta estratégia prejudicar o país no futuro.
“A Rússia “dá corda” para o Ocidente fornecer mais armas, fortalecer ainda mais as forças paramilitares, porque isso ajuda a legitimar a guerra para ela. Quando ela fala de “desnazificação”, o que ela quer falar é o que? O fim das forças paramilitares”, avalia.
Motta explica a consequência de armar a população: “Esses civis não estão vinculados ao esforço da resistência com as mesmas regras, com os mesmos valores de condução da guerra, que os soldados vinculados às forças armadas ucranianas. Então pode haver uma série de deturpações, uma série de crimes de guerra cometidos por essas forças paramilitares.”
No início do mês, um alto funcionário da Defesa dos EUA, chegou a afirmar que o comboio russo de quilômetros que se desloca na Ucrânia estaria sofrendo com escassez de combustível e alimentos. No entanto, ainda não está claro se as tropas russas estão, de fato, enfrentando falta de suprimentos.
O professor da Faap explica que conseguir itens de necessidade básica em uma guerra, como água, comida, barracões e comboios, não é tarefa simples, exige tempo e mobilização política.
Segundo Motta, “no front ao Sul é muito mais fácil para a Rússia conseguir reabastecer suas tropas, não só porque faz uma fronteira imediata com a Ucrânia, mas porque tem a Crimeia como apoio”.
Ainda que haja dificuldades no avanço, as consequências do conflito já são trágicas. Segundo a ONU, a ofensiva causou a morte de pelo menos 950 civis até o momento. Para os especialistas, ainda é difícil prever cenários futuros da Guerra na Ucrânia.
“Me parece que, cada vez mais, o espaço para negociação vem se reduzindo. Não só o espaço para negociação vem se reduzindo, como a gente percebe a utilização, por ambos os lados, de falas que, muitas das vezes, são ambíguas ou contraditórias”, analisa Motta.
“Acho que ou há uma escalada muito grande, e aí, de fato, os dois atores são obrigados a sentar à mesa para negociar, ou realmente esse conflito vai perdurar enquanto a Rússia não obtiver o controle da Ucrânia”, diz Leite.
“O que a Rússia está fazendo é uma estratégia de pinça: abrindo dois lados, um para cima e outro para baixo, no Norte e no Sul, e ela está avançando pelo território ucraniano. Uma vez avançado, vai chegar a Kiev, inevitavelmente. E isso demora”, explica Kalil. “Acho que o cessar-fogo vai acontecer ao Norte e ao Centro da Ucrânia. Ao Sul a gente vai continuar tendo guerra.”
CNN Brasil