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Herança digital: Entenda com quem ficam as criptos, milhas e perfis lucrativos após a morte do dono
14/02/2022 / 09:12
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Em abril do ano passado, a família de João Vitor Duarte Neves, de 20 anos, contratou um escritório de advogados depois que o rapaz morreu atropelado em Santos, no litoral paulista. Além do acompanhamento do inquérito policial, veio outro pedido: que a família conseguisse acesso ao conteúdo do celular de João Vitor. Começou, ali, um processo cujo desfecho se deu só no mês passado, quando a Justiça enfim concedeu uma liminar para que os parentes tivessem direito a rever as fotos, vídeos e mensagens.

— De um lado estava a proteção de dados e do outro a dor de uma família que clamava pelo resgate e obtenção daquela herança digital. Havia um apelo afetivo, já que no aparelho estavam as últimas fotos e vídeos de um ente querido e que se perderiam em um mundo em que quase ninguém mais tem esses registros impressos — conta o advogado Marcelo Cruz, que assumiu o caso com os advogados Marcio Harrison e Octavio Rolim.

A questão emocional se sobrepôs e, em janeiro, o juiz Guilherme de Macedo Soares determinou que a Apple, fabricante do celular, concedesse o acesso da família ao conteúdo. Com a decisão, a empresa disse que poderia transferir os dados salvos no Apple ID , a conta que identifica cada usuário e seus dados pessoais. E as informações foram então passadas a um irmão de João Vítor.

Histórias desse tipo têm aumentado, mas estão longe de um desfecho comum. Apesar da digitalização crescente em várias áreas, e acelerada na pandemia, a chamada herança digital ainda é um ponto cinzento na Justiça brasileira. Para além do valor sentimental de fotos, vídeos e mensagens em celulares, o termo abrange um patrimônio que vale dinheiro, e que vai de perfis em redes sociais (algumas com milhares de seguidores e bem lucrativas) a milhas de companhias aéreas, cashbacks e até criptomoedas. É um universo imenso — e sem regulação.

— Não existe um regramento específico para tratar dessa matéria. No Código Civil, onde está a disposição sobre sucessão, não há previsão de sucessão dos bens digitais. E quando se vai para a esfera do Judiciário o juiz tenta adequar o Direito a cada caso. Obviamente isso gera muita insegurança jurídica. E vira uma roleta, dependendo do juiz ou do próprio tribunal — explica a advogada Fernanda Figueiredo, sócia-consultora da Innocenti Advogados.

Exemplos recentes expõem a falta de entendimento uniforme sobre a transmissibilidade desses dados digitais. Em janeiro, em Minas Gerais, uma família pediu acesso ao Apple ID para recuperar informações do celular e do laptop do parente falecido. O Tribunal de Justiça do estado entendeu que os dados faziam parte de uma herança digital, mas indeferiu o pedido. Disse que não havia justificativa econômica para transmitir esse acesso aos herdeiros.

Direito à privacidade

Na prática, falta não só jurisprudência sobre o patrimônio digital como clareza sobre se o direito de proteção à privacidade se estende também a quem já morreu.

Em março do ano passado, em São Paulo, a Justiça negou o acesso de pais ao perfil da filha morta em um acidente de carro. A alegação foi que em vida a moça havia marcado nas configurações da rede social o desejo de que o perfil fosse excluído na hipótese de falecimento.

Já em Mato Grosso do Sul, uma mãe conseguiu liminar para excluir o perfil da filha de uma rede social mesmo com a opção de que a conta seguisse ativa.

— Há um impasse entre seguir a lei de proteção de dados e da privacidade ou seguir as regras do Código Civil e entender que um perfil de rede social também é parte de uma herança digital e deve ser partilhado entre os herdeiros. No caso de perfis de pessoas famosas e com valor financeiro, também há indefinição. A falta de regulamentação deixa essa lacuna legal e ainda leva a conflitos entre legislações — explica a advogada Laura Morganti, sócia da área Cível e de Resoluções de Conflitos da Innocenti Advogados.

A lei de alguns países, como a Alemanha, já prevê que a herança digital, assim como a convencional, deve ser transmitida automaticamente aos herdeiros. No Brasil, existem quatro projetos de lei no Congresso.

— Mas ainda não ganharam a devida atenção e trazem poucos detalhes sobre questões como direito à privacidade ou se a sucessão deve incluir todos os dados digitais, de redes sociais a chaves de acesso a criptomoedas. Mesmo que esses projetos passem, ainda haverá brechas que o Judiciário será chamado a solucionar — completa Fernanda.

A demora, diz, não se justifica em um mundo que já fala até do universo paralelo do metaverso:

— Sem previsão, os projetos já podem nascer velhos.

Plano sucessório

Enquanto isso, e apesar de tratar a morte com naturalidade não ser costume dos brasileiros, especialistas recomendam planejamento sucessório para quem não quer deixar dor de cabeça de herança.

— Até pela falta de legislação, pode-se recorrer aos institutos clássicos da sucessão, e o testamento é um deles — diz Fernanda. — É possível fazer a manifestação de vontade dos bens, deixando senhas, disposições, na busca de garantia de que os desejos da pessoa serão atendidos. Porque muitas vezes não são — completa.

E aos que preferem não deixar rastros no mundo virtual, vale atenção às letras miúdas dos termos e condições de redes sociais. O Facebook, por exemplo, oferece opção de marcar que a conta seja excluída ou nomear um “herdeiro” que terá acesso ao perfil.

— Na ansiedade de criar os perfis, as pessoas não leem informações que podem ter grande impacto futuro — diz Laura. — Checar as configurações é importante não só pela proteção dos dados, mas pelo que pode acontecer com eles depois do falecimento.

O Globo