PEDRO ANTUNES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em setembro, Lady Gaga mostrava os prós e contras de se visitar o futuro. Com artistas da vanguarda pop global, lançou o álbum de remixes “Dawn of Chromatica”, um trabalho desconjuntado, mas de momentos intensos, em que a brasileira Pabllo Vittar, a venezuelana Arca, a nipo-britânica Rina Sawayama, entre outros tantos outros, recriaram as músicas de “Chromatica”, de 2020.
Um mês depois, no início de outubro, Gaga larga este pop arrojado do século 21 para se aventurar em doces canções de Cole Porter em “Love For Sale”, seu segundo álbum ao lado do veterano e inalcançável Tony Bennett.
É o disco mais conservador de Lady Gaga e, portanto, também o mais rebelde deles. Confuso? Imagine um alcoólatra que bebe todos os dias. Para ele, a decisão de não beber, um dia por vez, é um pequeno ato de rebeldia contra o conservadorismo que havia se tornado o ato de ingerir álcool.
E um álbum como este de Gaga é exatamente o oposto do que se espera. Dela, supõem-se padrões rompidos, barreiras ultrapassadas e beats que apontem para o futuro da música como a conhecemos -em uma carreira que ignorou os sentidos de música comercial e de música experimental. Mas “Love For Sale” apresenta, sobretudo, a artista no ambiente seguro dos standards de jazz neste álbum de tributo.
Nos últimos 13 anos, Stefani Joanne Angelina Germanotta lançou sete álbuns. Fez história no pop e criou uma comunidade acolhedora entre os fãs, conhecidos como “little monsters” ou “monstrinhos”, mas nunca vestiu uma única roupa artística -literalmente, indo do látex aos vestidos de carne bovina e, mais importante, numa troca de figurino metafórica também.
Cada um dos seus discos pop é distinto, rompendo com as regras estabelecidas no anterior. Saltos maiores ela deu com o soft rock intimista “Joanne”, de 2016, ou nos álbuns com Bennett, “Cheek to Cheek”, de 2014, e, agora, “Love For Sale” -e tratar um como a continuação do outro é mutilá-los de suas belezas individuais.
Afinal, a segurança dos standards não significa conforto. Sem as altas doses de autotune que a fizeram brilhar ao surgir em “Poker Face”, de 2008, ou na recente “Rain On Me”, de 2020, somos apresentados à versão nua da voz de Gaga. Sozinha, com instrumentos no mínimo, é ela quem abre “Love For Sale”, em uma interpretação auspiciosa de “It’s De-Lovely” que dura quase um minuto até a chegada de Bennett e da banda completa.
“Love For Sale” traz muitas cartas de amor em um só disco. Amor a Cole Porter, um dos compositores mais sofisticados de sua geração, dono de um caneta hábil para tratar das paixões na efervescência urbana do início do século passado. Amor de Gaga às próprias raízes musicais. E amor, por fim, a Bennett, cuja carreira de 50 milhões de discos vendidos e 18 vitórias no Grammy se encerra por aqui.
No álbum, Bennett tem voos solos em “So in Love” e “Just One of Those Things” -neste último, o ritmo acelerado da bateria não tira o fôlego do cantor em uma interpretação memorável. Na manhosa “Do I Love You?”, Gaga faz uma viagem aos anos 1940. No refrão de “Let’s Do It”, ela opta por uma interpretação mais contemporânea deste convite ao amor: como hoje os amantes trocam emojis de coração em mensagem de texto em vez de cartas apaixonadas. O contexto é o mesmo, mudam as ferramentas.
Com este jazz tão clássico e tradicional de “Love For Sale”, tão oposto ao que ela já fez até aqui (inclusive do menos conservador “Cheek to Cheek”), Gaga se estabelece definitivamente como o camaleão desta geração. Se existe algum artista do pop que pode ser comparado a David Bowie -cujas transformações foram do folk espacial ao glam rock, à disco music, à música eletrônica e ao jazz experimental do último álbum-, é Lady Gaga.
Dificílimo prever o próximo passo de Gaga, mas já é seguro afirmar a sua regularidade. Ela é eficiente tanto em uma sofrência country como “Shallow” quanto na pirotecnia sonora de “Alejandro”. Esse é um tipo de contrato que assinamos com poucos artistas, gente como Bowie e Gaga, em que aceitamos as surpresas mesmo quando não são boas (ninguém é infalível, afinal), porque o renascimento artístico em si é memorável.
“Love For Sale” sofre do mal dos álbuns de tributo -é inevitavelmente caxias demais. E o peso de ser a despedida de Bennett aos 95 anos é sentido ali, definitivamente. Tudo certinho, no lugar que se espera. Manter a vanguardista Gaga à vontade neste ambiente musical conservado no formol torna-se, portanto, um ato revolucionário. É tão anti-Gaga que se transforma em obviamente-Gaga.