CLAUDIO LEAL
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em “Noturno”, novo álbum da cantora Maria Bethânia, o duelo entre trevas e claridade se inicia com a solidão de “Bar da Noite”, de Bidu Reis e Haroldo Barbosa. “Garçom, apague essa luz.” Na infância, as canções de fossa saíam de um aparelho de rádio e enchiam de drama a atmosfera da casa de seus pais, na cidade baiana de Santo Amaro.
“Eu aprendi a cantar essa música muito cedo. Sempre gostei de canção dramática, forte, com vivência. E Nora Ney com aquele timbre, as pausas muito fortes, significativas, teatrais, me cativou”, conta Bethânia, por telefone, de sua casa no Rio de Janeiro.
Com arranjos do maestro Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz, e produção musical de Jorge Helder, “Noturno” sai pela gravadora Biscoito Fino. No estúdio, protegida por testes e uma caixa de acrílico, ela superou o temor do contágio e gravou 12 faixas em três semanas.
“Eu queria de algum modo falar, cantar, por necessidade. É muito difícil a pandemia. Estou desde 13 de março de 2020 trancada. Fica muito ruim para uma intérprete. Esse manto sombrio foi difícil, mas era mais urgente fazer do que estar com medo”, ela diz.
Uma parte do repertório do álbum foi experimentado no show “Claros Breus”, na boate carioca Manouche, em 2019. Da melancolia ao apelo de vida, “A Flor Encarnada”, de Adriana Calcanhotto, e “Luminosidade”, de Chico César, anteciparam os contrastes de “Noturno”. Ela encerrava o espetáculo com “Bar da Noite”, fazendo o gesto de quem chama o garçom, com luz teatral.
O jogo de armar de Bethânia se completou com os sambistas Roque Ferreira —central em sua discografia— e Paulo Dáfilin, parceiros em “Lapa Santa”, uma ode à religiosidade popular nas barrancas do rio São Francisco. “Vidalita”, da cantora espanhola de flamenco Mayte Martín, é uma joia estrangeira. “Eu canto essa música dia e noite.”
Bethânia se preocupou em incorporar jovens compositores. Zeca Veloso, seu sobrinho, a procurou para apresentar “O Sopro do Fole”, embebida do universo do sertão. “Não era ele me pedindo para cantar. Era ele me mostrando uma expressão dele. Eu me apaixonei pela música.”
Depois de a conhecer na casa de Caetano Veloso, o músico Tim Bernades compôs por encomenda o bolero “Prudência”. O piano suave de Zé Manoel reforça a expressividade do canto de Bethânia.
O samba “Cria da Comunidade”, de Serginho Meriti e Xande de Pilares, se impõe como um vendaval de alegria. “Essa guerreira lá do morro da Pedreira/ Pra fazer a faculdade se formou/ Ainda mora no mesmo lugar/ Não quer sair de lá.”
“Essa música dele me pegou de uma maneira muito profunda, por traduzir uma realidade carioca, a cidade em que eu vivo desde os 17 anos, e suas dificuldades, com esse desejo único e profundíssimo de ser feliz e merecer ser feliz, saber escolher a felicidade, e lutar, e vencer”, descreve a cantora, que convidou Xande para dividir a faixa.
A tristeza brasileira se comprime em “Dois de Junho”, de Adriana Calcanhotto, inspirada na história do garoto Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, morto depois de cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife, no ano passado. Sua mãe, empregada doméstica, saiu para passear com o cachorro, deixando o menino aos cuidados da patroa.
“É uma peça de teatro, um livro, um filme. É real. E Adriana tem uma narrativa dramática. Então são duas energias muito fortes, da vida e da morte.”
Na dança de trevas e luminosidade, um poema do português Jorge de Sena fecha o disco e sinaliza sua esperança. “Uma pequenina luz bruxuleante e muda/ Como a exatidão, como a firmeza/ Como a justiça, brilha/ Não na distância/ Aqui no meio de nós/ Brilha.”
Em fevereiro deste ano, Bethânia ganhou um mantra. No final de sua live, entrando no camarim ainda sem ar, ouviu o celular tocando em cima da mesa. “O Brasil não vai acabar”, disse, emocionado, seu irmão Caetano Veloso.
“Isso me sustenta”, assegura Bethânia. “Eu estou triste com o Brasil. Estou triste. Estou triste. Se eu tivesse agora que fazer o ‘Brasileirinho’ [de 2003], não sei quais cantigas eu escolheria. Mas, como disse Caetano, o Brasil não vai acabar.”
Outra cena a marcou na quarentena. Na TV, um barco de bandeira preta, enlutado pelas vítimas da Covid-19, levava oferendas no dia de Iemanjá.
“Deus me livre dessa imagem!”, ela se consterna. “Coisa mais triste para mim, além de ver o sofrimento da humanidade, particularmente no Brasil, foi não poder ter fevereiro. Para mim, aos 75 anos, não ter fevereiro é muito difícil. Acho um castigo muito violento.” Fevereiro, lembremos, é marcado pelo ciclo de festas e procissões em Santo Amaro.
“Eu gosto de ter fé. Minha mãe dizia ‘sem fé é pior’. Sou ardorosa, fervorosa. Meu orixá, Iansã, é um símbolo de beleza em todos os sentidos. De força, de expressão, de movimento, de poder. Sou louca por ela. Ela e Oxum, sou das duas.”
Atenta ao noticiário, Bethânia se informa sobre os ataques de evangélicos neopentecostais a cultos de matriz africana. “Além de toda dor, de toda dificuldade, ainda vem com burrice, com estupidez. Não tem outra palavra, não é não? O que é isso? Respeito, minha gente. O mundo não começou anteontem, não. O mundo é velho, dinheiro que é novo.”
Ela não se vê diferente da mulher de 25 anos que subiu ao palco do Teatro da Praia, do Rio, no show “Rosa dos Ventos”, em 1971.
“O que me move como artista é a mesma raiz, a mesma criança dentro. Vontade, desejo, insegurança, amor, tesão, paixão, pânico, tudo misturado. Não mudou absolutamente nada. Apenas a vida que traz suas glórias, alegrias, surpresas extraordinárias. E suas grandes dores, a perda de minha mãe, a perda de irmãos.”
Diante do espelho, ela vê seus cabelos cada dia mais parecidos com os de Canô, sua mãe. Sua cara ganha as linhas de José, seu pai. “Na minha voz, não.” A voz é ela própria.
NOTURNO
Quando Lançamento em 30 de julho
Preço R$ 50,90 (disco); grátis (plataformas digitais)
Autor Maria Bethânia
Gravadora Biscoito Fino