LEONARDO VOLPATO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem assistir às cenas da travesti Cintura Fina na minissérie “Hilda Furacão”, que chega ao Globoplay a partir desta segunda (19), pode não saber quão desafiador foi o papel dado a Matheus Nachtergaele, 53. Não bastasse a pressão da estreia na TV, em 1998, ele ainda tinha a desconfiança da própria família que não queria que ele fizesse o personagem.
Segundo o ator, os parentes temiam que ele ficasse rotulado como o “bicha da TV”. “Eles tinham medo dessa exposição, de ficar marcado na TV aberta. E eu sabia que era uma grande estreia. Para nosso espanto, o Cintura Fina criou uma legião de fãs adolescentes e crianças”, revela o artista.
Na avaliação de Nachtergaele, suas características físicas unidas à coragem de interpretar uma travesti na conservadora Belo Horizonte da década de 1960 tornaram Cintura Fina uma espécie de herói para a juventude.
Cintura Fina realmente existiu. Alagoano, foi considerado um dos bandidos mais perigosos dos anos 1950. Bebia muito e, quando se metia em brigas, golpeava seus adversários com uma navalha. Se prostituía e tinha muito apreço por (algumas) mulheres à sua volta. As defendia quando preciso.
Na trama de Glória Perez, ele é mostrado como um amigo de Hilda (Ana Paula Arósio), uma moça da alta sociedade que desiste do casamento no dia da cerimônia e parte para a zona boêmia de Belo Horizonte, onde se torna a meretriz mais disputada da capital mineira nos anos 1960.
Exibida originalmente pela Globo em 1998, a minissérie de 32 capítulos revela o desejo do jovem frei Maltus (Rodrigo Santoro) por Hilda e a luta para resistir a essa paixão. “Hilda Furacão” é uma adaptação da obra homônima do escritor Roberto Drummond, com direção de Wolf Maya.
A preparação de Nachtergaele para o papel envolveu experiência ao lado de prostitutas e travestis nas ruas de São Paulo. O ator lembra que, “para entender a vibe”, bebeu cerveja com as travestis no centro da cidade: “Para ver o cotidiano e aquilo entrar na minha compreensão sensível”.
A forma como essas pessoas fogem dos cercos policiais e até mesmo a maneira como andam com saltos tão grandes em pisos de paralelepípedo foram pontos observados pelo ator. “Isso tudo eu aprendi. Queria me inteirar da vida delas e vi que é preciso ser muito macho para ser travesti de rua.”
O ator também viajou para BH para tentar ter um encontro presencial com o próprio Cintura Fina, cujo nome de batismo era José Arimatéia. Mas ele tinha morrido havia pouco tempo, na prisão. No fim dos anos 1990, ele havia sido preso por alguns dos quase 20 crimes que cometeu -e que foram resgatados na obra biográfica “Enverga, mas Não Quebra”, de Luis Morando.
Em todo caso, Nachtergaele quis fazer do personagem um símbolo de resistência. E a interpretação de Cintura Fina abriu muitas portas para o ator.
“Meu trabalho se caracterizou no cinema, no teatro e na TV por personagens marginalizados, na zona de perigo. Depois do Cintura, fiz mais travestis e personagens que tinham tons de enfrentamento e de aceitação”, analisa. Um deles foi João Grilo, de “O Auto da Compadecida” (1999), seu principal papel até hoje.
Revisitar “Hilda Furacão” será curioso, afirma o artista. Ele se diz ansioso para saber como o público vai receber o personagem mais de 20 anos depois.
“Em 1998 foi grande o sucesso de ibope. Quando estreia em streaming o volume é diferente, muita gente vê, mas não na mesma hora. Terá um tom nostálgico, mas muitos novos espectadores só o vão conhecer agora”, opina.
“Com esses novos [serviços de] streaming a gente se sente reestreando, e durante a pandemia isso nos faz ficar vivos”, continua Nachtergaele. Além dele, “Hilda Furacão” marcou o aparecimento de nomes como o de Ana Paula Arósio e Rodrigo Santoro.
“A minissérie é uma adaptação feliz da Glória, que caiu no gosto do público. Tem todos os ingredientes para o sucesso: a puta carismática e o padre condenado a não amar. Um amor impossível”, define.
Intérprete da personagem Maria Tomba-Homem, Rosi Campos, 67, conta que era muito divertido fazer parceria com Matheus e seu Cintura Fina. “Eu tinha também uma preparação física para fazer aquelas lutas e brigas. A gente se divertia muito”, afirma.
Na opinião dela, a Maria Tomba-Homem representa uma pessoa batalhadora que faz de tudo para sobreviver. É uma mulher pobre e humilde que acaba entrando nesse mundo das meretrizes, e isso se torna fascinante para ela.
“Todos os personagens têm uma função social, uma função dentro do romance. Função de mostrar como as pessoas encaravam o mundo na época. Então, é uma oportunidade de as pessoas conhecerem como era essa época que retratamos na trama”, conclui Rosi.