João Pessoa 28.13ºC
Campina Grande 24.9ºC
Patos 27.36ºC
IBOVESPA 126526.27
Euro 5.4702
Dólar 5.1151
Peso 0.0059
Yuan 0.706
Mensagens e depoimentos revelam pressão da Hapvida para médicos prescreverem remédios sem eficácia contra covid-19
01/10/2021 / 17:42
Compartilhe:

Além de ser alvo de procedimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e de uma sindicância do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec), o plano de saúde Hapvida também responde, há mais de um ano, um processo administrativo instaurado pelo Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon), do Ministério Público do Ceará (MPCE). Todas as investigações giram em torno de denúncias de que a operadora estaria obrigando seus médicos a prescreverem remédios sem eficácia contra a covid-19, o chamado “kit covid”, além de constranger os profissionais, cercear a liberdade profissional e manter uma lista de “médicos ofensores”, ou seja, aqueles que se recusavam a fazer a prescrição.

Segundo informações do Diário do Nordeste, que teve acesso ao procedimento investigatório, desde junho de 2020 a Hapvida é investigada pelo Decon sobre a imposição dos medicamentos. Em depoimento ao Ministério Público do Ceará, o médico Felipe Nobre revelou pressões internas para a prescrição dos fármacos sem eficácia comprovada contra a doença, entre eles, cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. “Essa pressão acontecia para todos os médicos que trabalhavam na rede”, disse o médico generalista cearense.

Desde julho de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vinha mostrando por meio de estudos que a cloroquina não tinha nenhum efeito no tratamento da covid-19 e passou a não recomendá-la.

Segundo o profissional, a operadora de saúde também analisava prontuários de pacientes, com o objetivo de identificar os médicos que estavam receitando ou não. A empresa teria chegado a criar um “ranking de médicos ofensores”, ou seja, aqueles que se opunham ao tratamento sem eficácia científica. “Os ofensores eram vistos como inimigos do plano”, diz Felipe.

Além dos comunicados através de grupos de WhatsApp, as abordagens também eram feitas pessoalmente. “Eu recebi pelo menos quatro visitas em consultório, referente a essa prescrição, sendo orientado a prescrever, pois fazia parte do protocolo da instituição, e que eles estavam vigiando se estavam prescrevendo ou não”, acrescenta. Os profissionais subordinados também estariam sendo instruídos a não passarem informações referentes aos riscos da hidroxicloroquina para os pacientes.

Felipe Nobre trabalhou na operadora de janeiro a maio de 2020, durante a primeira onda da pandemia no Brasil. Ele conta que, em certa ocasião, chegou a ser visitado no consultório por um coordenador que o questionou por que não prescrevia hidroxicloroquina a pacientes com suspeita de covid-19. O profissional teria defendido que não havia estudos sobre a eficácia do medicamento contra a doença e foi demitido pela operadora de saúde nove dias depois, conta.

Nobre diz que há cerca de duas semanas foi procurado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para prestar esclarecimentos. A instituição também investiga o caso e, na segunda-feira (27), realizou diligências nas sedes das operadoras dos planos de saúde Hapvida, em Fortaleza (CE), e do Grupo São Francisco, em Ribeirão Preto (SP). A São Francisco foi adquirida pelo Hapvida em 2019. Na ocasião, foram solicitados esclarecimentos e dado o prazo de cinco dias úteis para apresentação de documentos.

Além das denúncias por parte de prestadores de serviços, a apuração do MPCE se baseia no registro da reclamação de uma consumidora do plano, que contou ter recebido a receita de hidroxicloroquina de um médico do Hapvida sem sequer ter sido testada para a covid-19.

Defesa Hapvida

Em defesa escrita que consta no processo administrativo, em agosto de 2020, o Grupo Hapvida rebateu todas as acusações do médico Felipe Nobre, alegando que não existe imposição de prescrição de determinada medicação e alegando a “convicção de que a prescrição de todo e qualquer medicamento é uma prerrogativa do médico assistente, e que o tratamento do paciente é baseado na autonomia médica e na valorização da relação médico-paciente”.

“Embora possua profissionais médicos como prestadores de serviços, a signatária jamais os obrigou a informar diagnósticos, fornecer laudos, realizar ou atestar atos, e tampouco a prescrever medicações específicas”, afirma a defesa em nota.

Por fim, diz que, como o médico já manifestava interesse em deixar de prestar serviços para o plano, também não houve interesse da operadora em manter o contrato, “não figurando o rompimento do mesmo como conduta infrativa, tampouco prova das acusações formuladas pelo profissional”.

Multa de R$ 468,3 mil

Segundo o Decon, a prática de impor a todos os médicos conveniados, que receitem determinados medicamentos no tratamento de pacientes com covid-19, desrespeita a relação médico-paciente, fere o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a autonomia profissional garantida pelo Código de Ética Médica. Como resultado, em abril deste ano, o programa multou a rede privada em R$ 468,3 mil. O MPCE informou que a operadora foi notificada da decisão no dia 26 de abril de 2021 e apresentou defesa no dia 10 de maio de 2021.

Em manifestação de recurso, a defesa da Hapvida considerou as denúncias do médico “vazias” e sem “qualquer lastro probatório”, sugerindo que o órgão investigador deveria ter ouvido mais profissionais vinculados à empresa. Também considerou exagerado o valor da multa cobrada. Por isso, a empresa requereu a anulação da decisão administrativa ou, eventualmente, a redução da multa ao valor mínimo previsto em lei. Atualmente, o processo está em análise na Junta Recursal do Decon e tem previsão de julgamento em outubro deste ano.

Relatos de pacientes

A reportagem do Diário do Nordeste teve acesso à clientes do plano de saúde que confirmaram que, ao longo da pandemia, receberam a indicação médica do coquetel mesmo sabendo que não há eficácia científica comprovada para combater a doença. A pedido das fontes, seus nomes foram mantidos em sigilo.

Um homem afirmou que, em 2020, procurou atendimento na rede em três ocasiões por sintomas gripais e, em todas, recebeu o kit. Ele, inclusive, foi “obrigado” a assinar um termo de responsabilidade no ato da entrega dos medicamentos. Contudo, não chegou a tomá-los.

O paciente conta que uma médica que o atendeu em uma das vezes, visivelmente constrangida, disse que “era determinação do hospital” receitar o kit, mas que ele ficasse à vontade para não tomar a cloroquina e a ivermectina. Com dor de garganta, ele recorreu apenas a antibiótico.

Em janeiro de 2021, uma mulher de 29 anos procurou um hospital da rede no segundo dia de sintomas de gripe. Mesmo sem um teste confirmado, já que ela estava fora da janela recomendada, o médico que a atendeu também prescreveu o kit afirmando ser “procedimento do hospital”.

“Vinha até em um saquinho”, lembra a mulher, confirmando a necessidade de assinatura do termo de consentimento. Os pacotes continham comprimidos individualizados e traziam apenas o nome comercial da hidroxicloroquina. “Nem confirmaram o que eu tinha. Tomei porque você confia na palavra do médico e quer que a doença passe. Mas, depois, fiz um teste para Covid e deu negativo. Meu caso era só uma virose, uma gripe normal”.

Punição

Após as diligências por parte da ANS nesta semana, o grupo Hapvida informou que “a companhia vai apresentar os dados solicitados e está certa de que as dúvidas serão plenamente esclarecidas”. De acordo com a ANS, os resultados das diligências estão em análise e, em caso de irregularidades, a operadora pode ser punida.

“Após o prazo, a ANS irá analisar todas informações, que subsidiarão as decisões quanto às medidas que deverão ser adotadas. Todavia, se forem constatadas ações que não sejam de competência da Agência, os documentos poderão ser encaminhados para as entidades competentes”, diz a instituição.

Da Redação com informações do Diário do Nordeste