LEONARDO SANCHEZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Fatias de bananas, pitaias, amoras e muitas outras frutas giram furiosamente num liquidificador a cada episódio de “Nove Desconhecidos”, criando misturas coloridas que logo aparecem nas mãos dos personagens mencionados no título da minissérie. Eles alternam os goles ansiosos com explosões de raiva, crises existenciais e choros intermináveis, que têm como cenário um belo e luxuoso retiro espiritual.
O desfile de smoothies dá uma falsa sensação de tranquilidade àquele ambiente batizado justamente de Tranquillum House, que à primeira vista pode parecer um simples spa, com sua piscina cristalina, os quartos amplos e o saguão envidraçado mirando a natureza. Mas o espectador, assim como parte dos personagens da trama, está enganado ao pensar que aquele é um destino de férias.
Masha Dmitrichenko, a misteriosa e quase etérea russa que é proprietária do lugar, urge que seus visitantes, ao longos dos dez dias de estadia, contemplem a morte para dar valor às suas vidas, por mais caóticas e desoladas que sejam -e saiam de lá completamente transformados, ostentando uma versão evoluída deles mesmos.
Os cabelos compridos e loiríssimos que recaem sobre as batas brancas da personagem, uma divindade naquilo que parece ser um culto às boas energias, pertencem a Nicole Kidman, atriz que pela terceira vez colabora com David E. Kelley para produzir e estrelar uma de suas empreitadas televisivas. A eles se junta Liane Moriarty, autora do livro no qual “Nove Desconhecidos” é baseado, repetindo a tríade de sucesso formada em “Big Little Lies”.
Além da premiada série que garantiu dois Emmys a Kidman -um de atuação e outro de produção-, ela e Kelley também trabalharam juntos na menos aclamada, mas ainda assim elogiada, “The Undoing”, lançada há apenas dez meses. Ambas as tramas são da HBO, ao contrário de “Nove Desconhecidos”, cria do streaming americano Hulu, mas que estreia no Brasil para engrossar o catálogo do Amazon Prime Video.
“É incrível porque eu comecei minha carreira na Austrália fazendo o que na época era uma coisa muito rara -minisséries. Parece que eu estou completando um ciclo, agora que estou fazendo diversos trabalhos nesse formato. Eu acho fascinante”, diz Kidman, nascida no Havaí mas criada na terra dos cangurus.
Nos últimos anos, deixou o cinema em segundo plano para se reinventar e alcançar novos níveis de popularidade na televisão, estrelando minisséries como as já citadas -vale lembrar que “Big Little Lies” começou sem a intenção de ter uma segunda temporada- e “Roar”, mais uma que ela também vai produzir e que é um compilado de contos feministas.
“As minisséries são um formato fantástico para o trabalho do ator, porque você ganha muito mais tempo para explorar um personagem. Hoje, como sabemos, não há um apetite tão voraz por filmes quanto o que há por produções televisivas, então me anima ter essa oportunidade de trabalho, que, apesar de destinado às telas pequenas, faz uso da linguagem cinematográfica.”
Kidman e seu esquadrão feminino em “Big Little Lies”, formado ainda pelas veteranas Reese Witherspoon, Laura Dern e Meryl Streep, prenunciaram o aumento no investimento e na atenção dados hoje em Hollywood às produções serializadas. Desde então, divas como Kate Winslet, Cate Blanchett e Helena Bonham Carter encontraram papéis igualmente fortes e magnéticos na TV tradicional ou na efervescência do streaming.
Em “Nove Desconhecidos”, a personagem de Kidman, Masha, não é uma daquelas citadas no título. O grupo é formado exclusivamente por “hóspedes”, que representam diferentes tipos que, aos poucos, vão deixando transparecer ao público os problemas pessoais que os levaram àquele lugar.
Há uma família, formada pelos atores Michael Shannon, Asher Keddie e Grace van Patten, que tenta lidar com o luto; um homem vivido por Luke Evans que acaba de terminar um relacionamento; o ex-atleta de Bobby Cannavale, cheio de dores e vícios causados pelo esporte, e o casal metido a influencer de Melvin Gregg e Samara Weaving.
Além deles, se destacam Melissa McCarthy, como uma escritora best-seller que enfrenta uma crise criativa e a ruína de sua vida pessoal, e Regina Hall -que muitos devem lembrar como a escrachada Brenda, da franquia “Todo Mundo em Pânico”-, como uma dona de casa cheia de frustrações. Todos, com exceção do trio familiar, são ricaços que num primeiro momento devem gerar antipatia no público.
“Quando você começa a assistir à série, as vidas daquelas pessoas parecem muito boas, mas não é bem assim. Essa história é sobre pessoas que estão sofrendo, estão feridas. Elas não estão lá para perder peso ou melhorar suas habilidades de meditação”, diz Kidman, que promete uma finale chorosa e cheia de emoções, na qual todo o mistério que cerca a trama será explicado.
Para chegar a isso, sua personagem, a excêntrica Masha, vai acrescentar ingredientes incomuns aos smoothies onipresentes no cardápio da Tranquillum House, criando situações que por vezes beiram o bizarro. Seu método heterodoxo segue a ainda tímida, mas crescente onda de microdosagem de psicodélicos que tomou o mundo dos americanos ricos e famosos.
A tendência havia passado despercebida por Kidman, que resolveu pesquisá-la quando se envolveu com “Nove Desconhecidos”. Ela diz que, às viagens dos alucinógenos, David E. Kelley uniu questionamentos filosóficos, bebendo da rica combinação de entretenimento e assuntos profundos concebida por Liane Moriarty nas páginas.
É como a salada de frutas que vemos se embaralhar a cada café da manhã servido na Tranquillum House -o resultado é uma mistura encorpada, colorida e por vezes azeda, mas com sabores que surpreendem quem as prova.
NOVE DESCONHECIDOS
Quando: Estreia nesta sexta (20), no Amazon Prime Video
Classificação: 14 anos
Elenco: Nicole Kidman, Melissa McCarthy e Luke Evans
Produção: EUA, 2021
Criação: John-Henry Butterworth, David E. Kelley e Samantha Strauss