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Por que amamos passar raiva com videogames difíceis e o que isso tem a ver com Freud
25/05/2021 / 21:01
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EDUARDO MOURA

BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – A reputação deles não é das melhores. Volta e meia são chamados de antissociais, de potenciais atiradores em massa, de fascistas. Para piorar, acabaram ganhando uma denominação cafona. São os gamers.

Em meio a tantas ilações injustas, uma excentricidade une uma parcela considerável desses admiradores de joguinhos -o hábito de bufar de raiva em frente a uma tela de computador ou de TV enquanto aperta botões coloridos para tentar passar de fase. A respiração pesa, o sovaco molha e a boca se enche de lamúrias e profanações, num ritual que não parece nada saudável a olho nu.

Antes que alguém lance o argumento de que esses jogos dificílimos são coisa do passado, de uma época em que fliperamas dificultavam a jogatina para exigir mais fichinhas, é bom assinalar que games desafiadores estão na última moda.

Mas por que tantos de nós gostamos desses jogos eletrônicos difíceis? Antes de respondermos a esta pergunta, vale um pouco de contexto.

O game “Hades”, do pequeno estúdio americano Super Giant, desbancou o favorito “The Last of Us 2” e levou o prêmio de melhor jogo do ano no festival South by Soutwest, o SXSW, deste ano. Levou também os troféus de melhor indie e melhor jogo de ação no último Game Awards, o Oscar dos jogos eletrônicos. No Bafta Games, foi premiado pelo design, arte e narrativa, além de ter sido eleito o melhor jogo do ano pela premiação britânica.

O jogo é considerado um “roguelike”, subgênero de games que tem como principais características os cenários gerados aleatoriamente, a repetição e a alta dificuldade -se você morrer na fase final, prestes a zerar, já era, volta para a primeira fase.

O número de “roguelikes” é grande entres os jogos independentes. “Dandy Ace”, por exemplo, é um título brasileiro que tem tido uma recepção boa pela crítica e pelo público.
E agora o subgênero dá um salto grande, em direção aos AAA, o universo blockbuster.

“Returnal” é um dos principais lançamentos deste primeiro semestre para PlayStation 5 e traz elementos que costumam ser raros entre os “roguelikes” tradicionais, como gráficos poderosos, em 3D, e uma narrativa robusta, com ares hollywoodianos.

Os “roguelikes” são herdeiros de “Rogue”, jogo que surgiu na Idade da Pedra dos games, em 1980, e podia ser jogado no sistema operacional DOS, com gráficos paupérrimos -um morcego, por exemplo, era uma simples letra “B”, de “bat”, que se movia pelo cenário. O gênero angariou fãs e fez escola. Tudo aquilo com jogabilidade inspirada em “Rogue” que veio depois ganhou a alcunha de “roguelike”.

Pois bem, por que então essa onda de jogos difíceis?

Em “Além do Princípio do Prazer”, de 1920, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, descreve uma brincadeira de uma criança de um ano e meio de idade. Era um menino comportado, obediente, mas que tinha um hábito perturbador de apanhar objetos e os atirar longe, “de maneira que procurar seus brinquedos e os apanhar, quase sempre dava bom trabalho”, escreve Freud. E o rapazinho repetia o processo de arremessar e procurar, de novo e de novo, e se regozijava toda vez que encontrava o objeto.

Repetição, desafio, gozo. As mesmas características de um game “roguelike”. “Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, se harmonizava com o princípio de prazer?”, perguntava o austríaco, 60 anos antes de “Rogue” ser lançado.

O psicanalista Thomas Kehl tenta explicar. “O gosto pela dificuldade está ligado à criação de uma tensão, que, quando satisfeita, parece potencializar o prazer. Daí vem o efeito catártico, o momento da vitória, uma bomba de serotonina”, diz.

Há também um outro fator que os games trazem e que completam a equação que tenta explicar o porquê do sucesso atual dos “roguelikes”. Jogos têm histórias, ou seja, reproduzem fantasias. “A fantasia é inerente ao humano, a gente precisa sair do mundo e cada um sai do seu jeito”, diz Kehl. Esse escape pode ser ver novela ou futebol, mas também pode ser controlar um personagem de videogame.

Hoje em dia, um adulto exercer uma fantasia outrora considerada infantil -vendo filme da Marvel ou brincando de patrulheiro espacial num game- é bem mais aceito socialmente do que na época de Freud.

Em “Returnal”, a mecânica de tentar, morrer, repetir e vencer é sabiamente aproveitada pela narrativa. Na história, uma patrulheira espacial greco-americana tem um pouso forçado no planeta Atropos -mesmo nome de uma moira na mitologia grega, responsável por decidir como os humanos deverão morrer.

“Returnal” brinca com conceitos de tempo e espaço, o que permite um loop temporal. Toda vez que Selene morre derrotada por criaturas alienígenas, ela volta para o início da jornada.

“Outros jogos são sobre sobrevivência. ‘Returnal’ é sobre morrer para poder progredir, morrer para saber o que fazer e o que não fazer na próxima tentativa”, diz Gregory Louden, diretor de narrativa. “Sim, eu diria que é um jogo difícil, mas muito gratificante.”

Luis Fernando Tashiro, diretor da Mad Mimic, estúdio que desenvolveu o “roguelike” brasileiro “Dandy Ace”, conta que começaram a trabalhar no jogo antes do hype, mas o sucesso de “Hades” foi uma grata surpresa.

“Eu sinto que hoje o pessoal dos 25 aos 30 anos tem menos tempo para jogar, e um ‘roguelike’ você joga uma horinha e dá para parar”, diz Toshiro. Os millennials são também a geração da nostalgia, “esse pessoal veio dos jogos antigos difíceis, e o ‘Dandy Ace’ traz um pouco disso”.

Segundo o streamer veterano Eduardo Benvenuti, do canal BRKsEDU, o principal motivo da atual onda de “roguelikes” tem fundo econômico -tanto para o lado de quem produz quanto de quem consome.

O primeiro é o custo-benefício. “Se um ‘roguelike’ for bom, você pode até enjoar, mas quando volta a jogar depois de um tempo, a experiência é nova, já que as fases são geradas de forma aleatória”, diz. Como esse tipo de jogo -muitas vezes uma produção indie- não costuma ser tão caro quanto um superlançamento de console, o bolso do gamer-sofredor agradece e a serotonina sai mais em conta.

A ironia é que esses jogos difíceis para o jogar “são menos desafiadores para produzir”, afirma o streamer.

“Em vez de ter que fazer um arco narrativo de horas e horas, o ‘roguelike’ permite que um estúdio pequeno faça um game de uma hora, mas que possa ser repetido inúmeras vezes. E aí os caras podem focar muito mais a experiência de gameplay, a criação de inimigos, de cenários, numa coisa mais caprichada.”