Era quase o final da festa quando explodiu a bandeja de porcelana sobre um fogão de indução que foi esquecido ligado. O estouro aconteceu a poucos metros da rodinha em que os últimos convidados do aniversário do meu sobrinho, o Antônio, conversavam. Por sorte, ninguém se machucou. Só morreu o papo. Uma parte do grupo correu para ver os estragos, achar vassoura e pano de prato. O restante não teve dúvida: enfiou a cara no celular. Nesse instante, botei a mão no bolso e lembrei: aquele era o primeiro dia de uma semana que passaria sem smartphone. Nesse período, vi que o mundo não é mais feito para quem não tem um aparelho desse tipo na mão, realidade de 20 milhões de brasileiros.
A experiência começou à meia-noite de um sábado. A proposta era um repórter do GLOBO ficar sete dias sem acessar o telefone para nada. Ainda previa que eu não podia utilizar no computador aplicativos típicos do celular como o Whatsapp. Redes sociais, como Instagram, que não fazem muita diferença na minha vida, também estavam vetadas. A conversa não era nem comigo e, quando ouvi essa possibilidade, me meti pedindo para ser a cobaia. Fui o único que aceitei a tarefa.
Naquele momento, senti que teria uma ótima justificativa para me desconectar do fardo que, para mim, é o telefone. Previ uma semana inteira sentindo aquela sensação de quando a gente entra no avião e pode estar só ali, no ar, sem que nenhum outro assunto nos encontre.
E foi isso mesmo. Nunca fui tão concentrado. Mesmo com muita demanda na semana, não me senti ansioso — já que cada problema era resolvido a seu tempo e um de cada vez. Acho até que passei a dormir melhor. Mas a verdade é que eu liguei o telefone no minuto seguinte ao fim dos sete dias. Não que estivesse morrendo de saudade, mas não queria perder os descontos que ganho fazendo compras pelo aplicativo de um supermercado.
No primeiro dia sem celular, eu estava em viagem com a minha família, o que inclui quatro sobrinhos que pouco vejo. Nesse contexto, só quero saber das crianças e já não uso o telefone. Mas é comum de tempos em tempos checar o aparelho por algum motivo que é difícil explicar racionalmente sem que se pense na ideia de vício. O padrão é quase sempre o mesmo: olho o WhatsApp, depois passo para as notícias e, vez ou outra, se ainda não me distraí o bastante, acabo scrollando um pouco o feed do Instagram. É isso que eu faria após o acidente da bandeja estourada. Sem o smartphone, acabei ficando de olho nas pessoas concentradas em seus aparelhos — da mesma forma que eu ficaria — se isolando mesmo em meio aos amigos.
Também vi meu pai com cara de quem queria ir embora. Um tempinho depois consegui convencê-lo a ir descansar. Eu iria com ele até o hotel e voltaria com o único carro que tínhamos alugado. O problema é que, sem o celular, precisei dirigir sozinho e sem ajuda do GPS em Marechal Rondon (PR), cidade que faz fronteira com o Paraguai onde eu estava pela primeira vez. Acabei me perdendo e o jeito foi recorrer ao antigo método de pedir orientações na rua. A sorte é que era perto e errei pouco.
Perdido mesmo fiquei com a hora durante esse final de semana. Por isso, a primeira providência na segunda-feira foi procurar um relógio de pulso que sabia ter no fundo do armário. Depois de uns dez anos sem uso, a bateria não estava funcionando. Então, antes de ir para o trabalho, eu precisava resolver isso. Fui até o relojoeiro e, enquanto resolvia o problema, descobri que o Rei dos Relógios (a loja que achei no Google pelo computador) não aceitava cartão. Sem celular para fazer Pix e sem pegar uma nota de real há meses, acabei a manhã devendo R$ 35. Só no dia seguinte, depois de uma ida ao banco, quitei a dívida.
Durante a semana, percebi que mais desafios apareceriam num mundo que espera que todo mundo tenha o seu celular o tempo todo. Sem acesso ao WhatsApp, o jeito foi me inspirar nas antigas redações da centenária história do GLOBO para trabalhar e recorrer ao telefone fixo. O problema é que as ligações telefônicas foram dominadas pelo telemarketing e ninguém aguenta mais atender o aparelho sem ter certeza de quem é a pessoa do outro lado da linha.
Nem mesmo a minha mãe. Por isso, precisei pedir a um amigo que avisasse a ela que era eu que estava telefonando — queria notícias de um tio-avô que soube ter morrido. Sem o grupo da família, demorei quase um dia para ter a notícia. Já entre os contatos de trabalho, a solução foi mandar um e-mail pedindo: “Oi, sou eu te ligando. Estou sem celular. Me atende, por favor?”.
Foi na quarta-feira à noite — cinco dias depois do desafio começar — que comecei a sentir mais falta do aparelho. Primeiro, por causa do Palmeiras. Naquele dia, eu encararia uma volta do trabalho que combinaria VLT, catamarã e ônibus até chegar em casa, na Região Oceânica de Niterói. São duas horas de trajeto que começaram bem quando o meu time estava entrando em campo. O tempo exato para ver o jogo inteiro caso estivesse com o celular na mão, como faço com frequência. Sem o aparelho, perdi tudo enquanto não parava de pensar no assunto. Quando cheguei, li que foi uma partida horrorosa e me senti poupado.
Poucas horas depois, novamente, senti muita falta do telefone. A minha mulher, Camilla, pegou um carro de aplicativo naquela madrugada para o aeroporto com pouca antecedência do voo. Num dia normal eu acompanharia em tempo real ela chegando ao Santos Dumont pelo localizador do WhatsApp. Sem isso, fiquei preocupado e não consegui voltar a dormir. Só relaxei quando recebi um e-mail com notícias: “Oi, já estou no embarque”. Logo depois caí no sono. Tão pesado que, sem o despertador do celular, quase perdi a hora. Por sorte, o Manekim, gato lá de casa, estava sob meus cuidados e, com fome, me acordou a tempo de chegar ao trabalho com só um pouco de atraso.
Ficar sem celular afeta a vida de todo mundo que está no seu entorno. Mesmo quem sabia da experiência me mandou mensagem nesse tempo. No primeiro dia de semana, Camilla ainda não tinha se acostumado e me acionou por ali. Uma amiga do trabalho que queria uma carona também ficou no vácuo. Até a chefia do jornal criou um grupo no WhatsApp para falar comigo — e a conversa teve que migrar para o e-mail com várias pessoas copiadas.
A reação de quem eu avisava que estaria desconectado passou, invariavelmente, pelo espanto: “Uma semana?!”. Uma adolescente que conheci nesse período riu de nervoso. O susto também se deu em casa: foram pelo menos três semanas entre aceitar o desafio e de fato ficar sem telefone. Durante esse tempo, ouvi vários alertas da Camilla do que poderia dar errado nesse tempo.
“A gente vivia sem celular numa época em que o mundo estava preparado para isso. Se você tivesse uma emergência na rua, podia ligar de um orelhão. Você não tem mais a carteirinha do plano de saúde sem ser a digital”, me disse.
Num desses dias, estávamos de carro, a caminho de casa, voltando do jornal. Já passava das 23h quando fui parado numa blitz da Lei Seca. Tirei o celular e mostrei tanto a habilitação, quanto o documento. Assim que entrei novamente no carro, ouvi da Camilla: “E aí? Se tivesse na sua semana sem celular?”. A verdade é que eu seria multado já que a minha CNH física estava no Detran desde quando eu a renovei, em 2023, e não fui buscar. Despistei na resposta para ela e, naquela mesma semana, passei para buscar o documento.
No fim das contas, as facilidades do celular (o Pix, a CNH, o GPS, o relógio, o despertador, o desconto no supermercado, o jogo do Palmeiras) são o preço a pagar por uma fonte inesgotável de distração difícil de controlar. O telefone se traduz em uma espécie de compromisso constante. Cada vez que ele vibra, sou chamado a olhar. Mesmo que tente evitar, quando percebo já estou com o WhatsApp aberto.
Ao ligar o aparelho depois de uma semana, chegaram 1.501 mensagens represadas, de 102 contatos diferentes — sem que nenhuma dessas conversas tivesse sido respondida, não passaram de uma saudação inicial. Só isso seriam nove chamados do telefone por hora durante essa semana.
Posso garantir que a experiência foi ótima — apesar da morte de uma ofensiva de 141 dias no Duolingo — e recomendaria o teste. Mas, para viver uma vida sem celular hoje, é preciso abrir mão de facilidades, ser visto como excêntrico (no mínimo) e combinar com o restante do mundo.
Por Bruno Alfano, do jornal O Globo