BRUNO GHETTI
VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Há três anos, o cineasta Alexandre Moratto ganhou um importante reconhecimento no Independent Spirit Awards, premiação dedicada ao cinema independente. Seu filme de estreia, “Sócrates”, garantiu a ele o prêmio Someone to Watch, que em inglês significa algo como “alguém para ficar de olho”.
A Netflix seguiu a dica da honraria e apostou suas fichas no diretor, nascido nos Estados Unidos mas também cidadão brasileiro. O serviço de streaming é uma das forças por trás do longa “7 Prisioneiros”, dirigido por Moratto e exibido no Festival de Veneza agora, fora de competição.
Com Fernando Meirelles entre os produtores, o longa narra uma situação nacional dura, mas que o cinema ainda não tinha tratado com atenção. Mostra rapazes de origem muito humilde que são levados para São Paulo com a promessa de trabalho com carteira assinada e ganhos razoáveis. Mas o que os aguarda é bem diferente: eles se tornam prisioneiros em um ferro-velho, onde trabalham em condições análogas à escravidão -sem descanso, direitos e muito menos dignidade.
O administrador do local é Luca, interpretado por Rodrigo Santoro, que não hesita em agir com extrema violência caso os rapazes tentem reagir. Apenas um deles consegue se adaptar à nova vida: Mateus, vivido por Christian Malheiros, que logo se torna o braço direito de Luca. Ele conseguirá no crime um tipo de base material e de respeito que a vida fora dali talvez jamais proporcionasse.
Santoro se despe de qualquer glamour para interpretar o personagem, um sujeito fisicamente desleixado e moralmente asqueroso. Justamente por não ser uma opção óbvia para o papel, Moratto conta que achou interessante dar o desafio a ele.
“Nunca olho um personagem como um vilão ou um mocinho: o que eu faço é trabalhar para que ele tenha humanidade, para que o espectador consiga entendê-lo”, diz Santoro, em entrevista à reportagem em Veneza. “Você pode odiar o personagem, e eu não culpo quem odeia -eu mesmo odiei. E foi muito dolorido pra mim [interpretá-lo].”
A entrega ao papel foi intensa. “Cresci numa família de classe média, em Petrópolis, o que é ser privilegiado no nosso país. E estava fazendo um personagem bem diferente. Tem até uma frase em que ele diz que veio de um barraco, na beira do esgoto. E como eu poderia dizer essa frase?”, diz Santoro, que visitou comunidades e ouviu testemunhos de pessoas que trabalharam em condições sub-humanas em sua pesquisa para viver Luca.
“Eu senti culpa, ansiedade, angústia, porque realmente me aproximei do personagem. A gente sabe o que acontece no nosso país, mas é muito diferente você se propor a se pôr nesse lugar, e eu durante três meses fiz isso.”
Rodado em São Paulo pouco antes do início da pandemia, o filme foi recebido com aplausos, mas também com dúvidas por parte do público europeu, sobretudo se existem de fato situações degradantes como as que o filme mostra.
“A ideia é que o filme primeiro eduque sobre esse tema e que levante essa discussão. O ferro-velho é um microcosmo, mas ele representa todo um sistema. Devemos levantar essa discussão e ela pode ser mais abrangente que o específico do trabalho análogo à escravidão”, diz.
Santoro diz acreditar que Luca também é produto desse sistema ultracapitalista, que não consegue oferecer ao personagem “a possibilidade de caminhar sozinho, de ter uma vida decente, o mínimo para viver”, afirma. “Ele escolhe esse caminho. E dá, também, uma opção para o Mateus”, diz o ator sobre o longa, que deve estrear na Netflix ainda este ano.
Outro filme brasileiro exibido em Veneza, na mostra Semana da Crítica, é o drama “A Salamandra”, primeiro longa do pernambucano Alex Carvalho. Conta a história de uma francesa que passa um tempo no Recife, onde se sente deslocada. Ela se envolve com um rapaz negro e mais jovem, vivendo um romance que externa suas fragilidades, enquanto estrangeira, e também as do rapaz, pela questão racial.
O filme se baseia no romance “La Salamandre”, do premiado escritor francês Jean-Christophe Rufin, que já viveu no Brasil. “O livro me remetia a memórias que eu tinha da adolescência, de bares e outros lugares que eu frequentava”, afirma Carvalho a este repórter. Apesar de nascido em Pernambuco, ele mora há mais de uma década na Inglaterra.
“Eu tinha uma identificação muito grande com a personagem, porque também saí do meu lugar e tive essa sensação de estrangeiro, de adaptação, mutação”, prossegue o cineasta. O elenco é encabeçado pela a prestigiada atriz francesa Marina Foïs, em reluzente performance no papel principal.
Vencedora do prêmio de melhor documentário em Veneza há dois anos, com “Babenco, Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou”, Bárbara Paz voltou ao Lido, agora com um curta-metragem. “Ato” marca sua estreia dirigindo uma ficção, narrando o encontro de uma mulher solitária que ajuda um viúvo a aplacar o vazio de ambos.
Paz diz ter se sentido muito feliz com o convite do festival. “A cultura brasileira de alguma forma sobrevive para outros continentes, apesar do desgoverno contra ela”, diz a cineasta. “O filme é um pequeno ato sobre a solidão. Nasceu no isolamento, num mundo onde a solidão foi a maior protagonista, com palcos vazios e medo constante da morte”, conclui.
Do Brasil, está ainda em Veneza o trabalho em realidade virtual “Lavrynthos”, de Fabito Rychter e Amir Admoni. É uma simpática narrativa em 3D, em que uma garota encontra um monstro em um labirinto, com quem aprende lições de vida.
O longa “Deserto Particular”, de Aly Muritiba, que integra o evento paralelo Venice Days, completa o time brasileiro no Lido.