Nas Montanhas Ozark, no Arkansas, a quase uma hora da cidade mais próxima, um pequeno grupo de proprietários rurais está construindo um complexo exclusivo do zero. Os candidatos à comunidade são selecionados com entrevista pessoal, verificação de antecedentes criminais, questionário sobre herança ancestral e, às vezes, até mesmo fotos de seus parentes.
Os dois arquitetos da comunidade — um trompista com formação clássica que transmitiu ao vivo seus próprios vídeos de sexo e um ex-pianista de jazz preso, mas não acusado, por tentativa de homicídio no Equador — dizem que precisam confirmar pessoalmente que os candidatos são brancos antes que possam ser recebidos.
“Ver alguém que não se apresenta como branco pode nos levar, entre outras coisas, a não admitir essa pessoa”, disse um dos fundadores, Eric Orwoll, que trabalha como acadêmico platônico no YouTube, mas agora está focado em desenvolver 647 mil m² em Ravenden, Arkansas, em uma comunidade estritamente para pessoas brancas e heterossexuais chamada Return to the Land.
A extrema-direita está em ascensão nos Estados Unidos, impulsionada em parte por nacionalistas brancos que exploram as ansiedades econômicas e uma população cada vez mais frustrada com o status quo político.
Agora, com o governo Trump revertendo políticas de diversidade, equidade e inclusão, reprimindo a imigração e oferecendo perdão a supremacistas brancos, alguns veem uma oportunidade. Ao criar a comunidade, os fundadores do Return to the Land estão testando leis de moradia antidiscriminação que estão em vigor há 57 anos.
O outro fundador da comunidade, Peter Csere, foi preso no Equador por esfaquear um mineiro e é acusado de roubar dezenas de milhares de dólares de uma comunidade vegana local. Tanto ele quanto Orwoll afirmam acreditar que o Return to the Land atende aos requisitos para uma isenção legal para associações privadas e grupos religiosos que oferecem moradia aos seus membros.
Tim Griffin, o procurador-geral do Arkansas, abriu uma investigação sobre potenciais violações legais por parte da Return to the Land após reportagens sobre a comunidade terem sido publicadas nos jornais The Forward e Sky News. Jeff LeMaster, diretor de comunicação do órgão, disse em um comunicado: “Continuaremos nossa análise deste assunto”.
ReNika Moore, diretora do programa de justiça racial da União Americana pelas Liberdades Civis, contestou as alegações da dupla de que o empreendimento é legal.
“As leis federais e estaduais, incluindo a Lei de Moradia Justa, proíbem a discriminação habitacional com base em raça, ponto final”, disse ela em um e-mail. “Reformular a segregação residencial como um ‘clube privado’ ainda é uma violação clássica da lei federal”.
Representantes do America First Legal, grupo de defesa conservador, não responderam a um pedido de comentário sobre a situação jurídica da comunidade. Representantes da governadora Sarah Huckabee Sanders, do Arkansas, também não responderam a um pedido de comentário.
Até o momento, não houve contestações legais ao Return to the Land. Mas John Relman, advogado de direitos civis especializado em violações de moradia justa, disse que o grupo poderia ser processado não apenas com base na Lei de Moradia Justa de 1968, mas também em diversas seções da Lei de Direitos Civis dos EUA de 1866.
“Vocês têm um caso concreto de discriminação intencional”, disse ele. “Acho que eles estão enganados quando dizem que estão livres”, complementou.
Mas a Return to the Land diz que vê uma abertura em um governo federal que expandiu os limites das leis e normas, especialmente quando se trata de raça.
“O Return to the Land precisa ser combatido enquanto a situação está quente”, escreveu Orwoll em uma página de arrecadação de fundos para o grupo, que arrecadou quase US$ 90 mil. No Brasil, com a atual cotação do dólar, o valor ultrapassa os R$ 495 mil.
“Eles veem este momento como um momento muito oportuno. Eles veem um amigo na Casa Branca, no mais alto nível”, declarou Peter Simi, professor de sociologia na Universidade Chapman, na Califórnia, especialista em violência extremista. “Eles se veem literalmente em vários cargos na administração, incluindo o Departamento de Justiça e o Departamento de Defesa”, acrescentou.
O momento, ressaltaram tanto Orwoll quanto Csere, é oportuno.
“Prefiro que o precedente seja estabelecido e a discussão seja travada enquanto houver um clima cultural e jurídico relativamente favorável”, disse Orwoll, de 35 anos. “Portanto, se vamos travar esta batalha — e é uma batalha que será travada em algum momento — é melhor que seja agora.”
Return to the Land é o nome tanto do complexo de 647 mil m², que tem cerca de 40 moradores, quanto de uma associação privada à qual Orwoll disse que “centenas” se associaram, pagando uma taxa única de adesão de US$ 25 (R$ 137,50) e sendo aceitas após compartilharem informações online sobre sua origem étnica.
Orwoll e Csere, juntamente com outros três homens, administram uma sociedade de responsabilidade limitada fundada em setembro de 2023. Quase duas semanas depois, compraram o terreno em Ravenden por US$ 237 mil (R$ 1,3 bilhão), segundo registros imobiliários. Os membros da associação podem comprar ações da LLC, atualmente avaliadas em cerca de US$ 6.600 (cerca de R$ 36 mil) cada. Em troca de cada ação, cada um recebe aproximadamente 12 mil m² no complexo.
Inicialmente, os dois receberam a atenção da mídia em seu complexo, ansiosos para atrair novos recrutas e também tráfego para as páginas de doações de criptomoedas e metais preciosos em seu site.
Agora, eles estão mais cautelosos.
Orwoll recentemente ofereceu ao The New York Times uma visita guiada limitada, permitindo a entrada na propriedade por um portão com fechadura. Ele sentou-se em uma cadeira dobrável em seu escritório, localizado em um galpão isolado com ar-condicionado e internet de fibra óptica, dois pianos e prateleiras repletas de textos de filosofia. Antes que um fotógrafo pudesse tirar as fotos, ele pegou um exemplar do livro “Mein Kampf”, escrito por Adolf Hitler, de uma estante e o virou para esconder a lombada.
O complexo parece isolado do resto do mundo. Ravenden é uma pequena cidade com cerca de 400 moradores e uma churrascaria. O supermercado mais próximo fica dentro de um Walmart, a 30 minutos de distância. O mascote da cidade, um corvo, é homenageado por uma estátua de estuque de 3,6 metros na lateral da rua principal.
No complexo, estradas de cascalho irregulares foram escavadas por tratores no terreno acidentado e arborizado. Orwoll exibiu uma elegante cabana branca de dois andares com uma bandeira americana tremulando acima da porta da frente e um centro comunitário em construção que ele espera que um dia sediará jantares e eventos.
Mais abaixo, passando por um riacho, havia um curral com cabras leiteiras, tanto mães quanto filhotes, guardadas por Lucy, uma cadela branca da raça Grande Pirineus, presa a uma longa corrente.
O restante do complexo, disse ele, estava interditado devido à vontade dos moradores. Ele se recusou a dizer quantas cabanas já foram totalmente construídas, mas alguns moradores, garante, já instalaram painéis solares, sistemas sépticos e de água e instalaram geradores de eletricidade.
Orwoll cresceu em La Mirada, Califórnia, nos arredores de Los Angeles, e no ensino médio se considerava um libertário. Estudou trompa na prestigiosa Eastman School of Music em Rochester, Nova York, antes de se mudar para Milwaukee para integrar a orquestra do Shen Yun, a produção musical e de dança clássica chinesa.
Embora Orwoll considere o grupo uma seita, ele disse:
“Gostei muito de como eles fizeram as coisas. São muito eficientes. Achei interessante ter um complexo como o deles.”
Apesar de nunca ter estudado a filosofia grega formalmente, ele sempre se sentiu atraído pela filosofia grega e, eventualmente, começou a enviar vídeos caseiros sobre Platão e a consciência coletiva em seu canal do YouTube.
Ele atraiu seguidores, incluindo alguns comentaristas que responderam com argumentos sobre as mudanças demográficas nos Estados Unidos. Eles repetiram ideias da chamada teoria da Grande Substituição — uma teoria da conspiração que defende que populações não brancas substituirão pessoas brancas por meio de taxas de natalidade e migração em massa — e pseudociência racista sobre a inteligência humana e sua ligação com a genética, uma ideia amplamente desmascarada por especialistas.
Esses comentários, disse ele, começaram a convencê-lo de que os brancos nos Estados Unidos estavam sendo perseguidos e que a estrutura dos Estados Unidos estava se desgastando à medida que sua população não branca crescia.
“Eu fui induzido à pílula vermelha”, disse ele, usando um termo para o despertar para uma suposta verdade oculta. “Se nunca tivéssemos tido imigração em massa, se ainda fôssemos uma nação homogênea, não sentiríamos tanta necessidade de formar comunidades como esta”, disse ele.
Entre suas reflexões gravadas sobre Platão, ele começou a incluir vídeos sobre as elites nos Estados Unidos e teorias sobre como a genética para cabelos loiros e olhos azuis se espalhou pelo mundo ao longo da história.
Os vídeos chamaram a atenção de Csere, de 36 anos, um pianista de jazz criado em Connecticut. Os dois homens se tornaram amigos online.
“Finalmente, percebi que há um componente genético no QI, e é uma daquelas coisas que as pessoas gostam de fingir que não existe porque é politicamente inconveniente”, disse Csere, repetindo a teoria em uma entrevista no complexo. “Há culturas que inventaram a roda há milhares de anos e há culturas que nunca inventaram a roda até que ela lhes foi dada por outra pessoa.”
Ele disse que se interessou por Orania, uma cidade para brancos na África do Sul, fundada no final da era do apartheid, restrita aos africâneres — sul-africanos de ascendência europeia — e que tem sido amplamente ignorada pelo governo sul-africano.
Insatisfeito com a vida de músico, Csere disse que começou a buscar algo com “mais significado”. Ele primeiro abraçou o veganismo e a “necessidade de se tornar um hippie” e formou uma ecovila no Equador.
A vila, Fruit Haven, acusou publicamente Csere de fraude e roubo em seu site. Em um comunicado, o grupo afirmou que ele fugiu em julho de 2023 com milhares de dólares desviados, e também disse que ele certa vez esfaqueou um mineiro equatoriano, causando-lhe um colapso pulmonar, e foi preso sob uma possível acusação de tentativa de homicídio no Equador. Ele ainda não foi formalmente acusado.
O Times revisou a documentação da prisão, bem como e-mails de membros da comunidade implorando a Csere que devolvesse seus fundos.
Csere, por sua vez, disse que o esfaqueamento foi um ato de legítima defesa durante uma altercação e que deixou o país muitos meses após o incidente. Ele contestou a ideia de que devia dinheiro a algum membro da comunidade.
“Eles vêm tentando prestar queixa há muito tempo e não conseguem”, disse Csere sobre as autoridades equatorianas. Membros da comunidade estavam “tentando criar drama” discutindo o incidente e alegando que ele lhes devia dinheiro, disse ele.
Há cerca de uma dúzia de crianças morando no Return to the Land — Orwoll não quis revelar um número exato — e todas são educadas em casa, disse ele.
“Prefiro deixar que os pais eduquem seus filhos como quiserem”, disse ele.
Orwoll e sua ex-esposa, Caitlin Smith, têm quatro filhos com idades entre 2 e 8 anos. Morar na comunidade, disse Caitlin , tem sido ótimo para seus filhos porque lhes deu “pessoas com quem brincar em quem podemos confiar”.
O casal se conheceu na escola de música — assim como Orwoll, Smith, de 31 anos, natural do interior do estado de Nova York, toca trompa. Antes de terem quatro filhos, o casal fazia vídeos de sexo ao vivo por dinheiro no site pornô Chaturbate.
“Quando eu fazia isso, eu era um niilista moral. Eu ainda não era cristão”, disse Orwoll sobre os vídeos. “Eu tinha uma visão de mundo e um sistema de valores diferentes, e parte da minha justificativa para adotar valores mais tradicionais era ver os erros que cometi quando não os tinha quando jovem.”
Caitlin se recusou a comentar os vídeos. De acordo com sua página de perfil, que ainda está visível, juntamente com os vídeos, ela listou uma preferência por homens, mulheres, pessoas trans e casais. No Return to the Land, gays de qualquer raça são proibidos.
The New York Times via jornal O Globo