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“Ser travesti é ser um corpo político”: conheça Gabi Benvenutty, a nova face da política na Paraíba
10/02/2025 / 18:34 / Matheus Melo
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‘Ser a primeira não basta’: Gabi Benvenutty quer abrir caminhos para outras (Foto: Reprodução)

Foi por meio do movimento estudantil, da militância em direitos humanos e da atuação com a comunidade Ballroom que Gabriella Kollontai Benvenutty percebeu a força que ações coletivas podem ter quando espaços de decisão são ocupados por aqueles historicamente marginalizados.

Estudante de Serviço Social pela UFPB e militante do movimento estudantil, produtora cultural independente, atleta de voleibol, travesti e negra, Gabi Benvenutty sempre esteve envolvida em movimentos que buscam dar visibilidade e voz às populações mais vulneráveis.

Em 2024, em sua primeira candidatura a vereadora de João Pessoa, Gabi recebeu 3.462 votos – um número expressivo para quem concorreu pela primeira vez nas eleições municipais para a Câmara da capital paraibana – ficando na suplência pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Meu objetivo não é só ser a primeira travesti vereadora, mas contribuir para um projeto coletivo que garanta e continue abrindo caminho para que outras possam ser. Possam ser a primeira vereadora, a primeira deputada. Mas esse ‘ser a primeira’ pra gente ele não é contente. É importante, óbvio, mas denuncia que nenhuma chegou lá ainda, e infelizmente isso é uma realidade em diversos postos, inclusive nos locais de poder, de tomada de decisão”, afirma Gabi Benvenutty em entrevista ao F5 Online.

A eleição de 2024 foi um marco, não só para mim, mas para toda uma comunidade que há décadas luta por representatividade política. O fato da gente ter ficado na suplência já diz muito sobre a força desse movimento, e a necessidade de uma política que olhe para as travestis, que olhe para a população LGBTQIAPN+, que olhe para as periferias, e para quem historicamente foi excluída dos espaços de poder”, ressalta.

Gabriella segue articulando dentro e fora das instituições, fortalecendo os espaços de mobilização que participa, e acredita que a política não se resume apenas ao período eleitoral. “Ela é esse período, a política eleitoral, mas ela não se resume a ele. Nossa atuação, a minha, na minha militância, ela segue viva na Casa das Benvenutty, na universidade onde eu estudo e atuo nos projetos de extensão com as demandas da sociedade, e nos diálogos que venho construindo já com a juventude, com os movimentos sociais que eu construo, que estou próxima, e no dia-a-dia”, pontua.

O nome Gabriella Kollontai Benvenutty faz referência a duas figuras marcantes na luta por uma sociedade mais digna – Fernanda Benvenutty foi uma enfermeira e ativista cultural paraibana, reconhecida por sua luta pelos direitos da população LGBTQIAP+ e pela inclusão social, deixando uma trajetória de legado, falecendo em 2020. Já Alexandra Kollontai foi uma revolucionária e feminista russa, participante ativa da Revolução de 1917 e pioneira na defesa dos direitos das mulheres, promovendo políticas de igualdade e questionando estruturas tradicionais de família e trabalho. Ambas representam a resistência e a busca por justiça social, valores que inspiram Gabriella em sua caminhada.

“Eu acho que ser travesti é ser um corpo político, e acaba que eu tô ali vivendo política 24 horas por dia, todos os momentos do meu dia, quando eu decido sair de casa e entrar em um ônibus lotado onde as pessoas vão me olhar dos pés à cabeça.”

Segundo Gabi Benvenutty, após o resultado promissor da última eleição, os próximos passos envolvem “seguir ampliando o trabalho que já vem sendo feito, fortalecer as bases e preparar o terreno para uma nova disputa, 2026 vem logo aí, ainda não sei como vai ser, mas a gente sai de 2024 repaginada, renovada, com um gás novo pra poder tá disputando, e agora sonhando mais, acreditando mais que é possível sim colocar uma travesti na Assembleia Legislativa, na Câmara de Vereadores. E que a gente vai fazer isso logo em breve”, garante a mãe fundadora da Casa das Benvenutty.

“Não acho que se trata só do meu nome, mas de um projeto de transformação que a gente quer consolidar, que não se inicia e nem se encerra em Gabi Benvenutty.”

Gabi Benvenutty: “ser travesti é ser um corpo político” – Foto: Carol Borges

Gabi Benvenutty: uma nova liderança política na Paraíba

Gabriella Kollontai Benvenutty defende a importância da educação política, formação de novas lideranças e incentivo a candidaturas de jovens, mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+. Ela também enfatiza a necessidade de uma comunicação inclusiva e acessível para que a população compreenda a relevância das políticas públicas voltadas à diversidade e inclusão.

“Eu vejo essa renovação como um movimento necessário e urgente pra política. A gente tá num estado que é extremamente conservador e coronelista da perspectiva política mesmo, de pessoas, nomes e sobrenomes que herdaram locais na política, na Assembleia, nas Câmaras estado afora, não só em João Pessoa. E a gente precisa por fim a essa política cansada, cacura, de homens brancos, cis, ricos, que estão ali.”

Para Gabi, “a esquerda tem precisado se reinventar para continuar assumindo locais de disputa, as comunidades, as quebradas, as periferias, as populações historicamente marginalizadas”, avalia.

“E acho que não basta apenas a gente ocupar os espaços, a gente precisa disputar os rumos da política e garantir que ela seja de fato conectada às necessidades do povo, às nossas necessidades, que diariamente vivenciamos a cidade, vivenciamos o transporte público, trabalhamos. As pessoas pobres, que são a maioria da sociedade, por diversas vezes elas acabam ficando muito aquém da discussão política e da tomada de decisão. A minha candidatura surge nesse contexto, nesse desejo de construir essa ponte entre as pautas da comunidade LGBTQIAPN+, da juventude preta, periférica, dos movimentos sociais, com a institucionalidade. Se isso significa uma renovação, acho que a gente tá nesse caminho mesmo e esse é o caminho que a gente quer seguir.”

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Mais que um nome, um movimento: Gabi Benvenutty e o futuro da política paraibana – Foto: Reprodução/Instagram

Honrando as raízes e a resiliência da comunidade LGBTQIAPN+

A jovem de 26 anos, natural de Caruaru, Pernambuco, conta que suas inspirações “vêm tanto da história quanto da vivência cotidiana das identidades trans que abriram caminho para que eu e tantas outras pudéssemos estar aqui hoje, ocupando as universidades, disputando cargos políticos.”

Posso citar Kátia Tapety, que é a primeira travesti eleita para um cargo político no Brasil em 1992, quando a gente sequer imaginaria tá concorrendo, a gente tem Kátia Tapety la no interior do Piauí sendo eleita. A gente tem as traviarcas do movimento trans no Brasil, a Jovanna Baby, a Keila Simpson, e tantas outras que são fundamentais e importantes para construção das políticas de transgeneridade que a gente tem hoje, elas são pioneiras, ainda estão vivas e é necessário que a gente se lembre da história dessas mulheres. Elas têm uma trajetória no movimento fundamental e são referência, assim como outras, a Bruna Benevides, uma liderança atual que fortalece a luta em tantos espaços”, acrescenta.

Na política institucional atual, Gabi destaca Erika Hilton como uma “representante histórica, e um avanço importantíssimo para nossa comunidade, a primeira parlamentar deputada federal eleita. Mas tem aqui próxima da gente a Robeyoncé Lima que também é uma inspiração pra mim, a Erica Malunguinho lá em São Paulo eleita como deputada estadual em 2018, são referências políticas importantes.”

E pra mim a maior de todas, é Fernanda Benvenutty, ela desejava ser eleita parlamentar, concorreu a vereadora, concorreu a deputada estadual, infelizmente não conseguiu realizar esse seu sonho em vida, mas onde ela estiver ela tem certeza que outras travestis vão realizar esse sonho por ela, porque esse é um sonho coletivo que não é só dela, mas é um sonho de todas nós, e acredito que a luta dela, o seu legado são a base daquilo que eu construo hoje. Se eu estou aqui, é porque as minhas ancestrais vieram antes de mim, é porque outras travestis desafiaram o sistema que eu desafio hoje e enfrentaram as violências e nunca baixaram as suas cabeças. Elas ensinaram muito e elas são as minhas referências e as minhas inspirações”, assegura Gabi Benvenutty, que há sete anos mora na Paraíba.

A estudante de Serviço Social explica que “a transfobia segue sendo estrutural e letal. João Pessoa ainda é uma cidade onde travestis e pessoas trans enfrentam obstáculos imensos para acessar os direitos básicos como saúde, educação, trabalho e renda. Muitas de nós somos empurradas para a marginalidade, para a prostituição compulsória, porque o mercado de trabalho formal ainda nos nega oportunidade, porque a escola, a educação, a universidade ainda nos expulsa das salas de aula. E além disso há um apagamento da nossa história e da nossa cultura, o que reforça esse processo de desumanização das nossas existências, é um processo de desvalorização e negação do direito de humanidade mesmo.”

A Rede Trans Brasil registrou 105 mortes de pessoas trans e travestis no país no ano passado. Apesar de serem 14 casos a menos que em 2023, o Brasil segue, pelo 17º ano consecutivo, como o que mais mata pessoas trans no mundo. Os dados estão no dossiê “Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira”, lançado em janeiro, o mês da Visibilidade Trans.

O levantamento, que usa como base os casos divulgados por meios de comunicação, como internet, redes sociais, jornais e televisão, mostra que 93% das vítimas eram mulheres trans e travestis e que a maior parte das mortes aconteceu na região Nordeste.

Para Benvenutty, mudar essa realidade de violência direcionada passa por construir políticas públicas efetivas, mas também será necessária uma profunda mudança cultural.

A gente tá numa sociedade que é transfóbica e que tem no seu imaginário a palavra ‘travesti’ associada a negatividade. Então a gente vai passar por um processo de construção de políticas afirmativas, de empregabilidade, de acesso à educação sem evasão, de segurança, enfim, para que a gente possa sonhar e pensar em viver, viver de fato e não sobreviver, sem medo”, afirma Gabriella.

“E principalmente continuar ocupando os espaços de decisão. Acho que a mudança só vai vir, só vai acontecer de fato quando a gente, pessoas trans, travestis, estivermos escrevendo nossas próprias narrativas, sejam elas ocupando os parlamentos, sejam elas ocupando as universidades, seja onde quisermos, que a nossa identidade não mais nos limite. Hoje a travestilidade é uma das poucas identidades que está limitada à prostituição compulsória, e meu sonho é que a gente possa romper com isso”, reflete Gabi Benvenutty.

Gabriella Kollontai Benvenutty – Foto: Carol Borges

O legado do ballroom na cultura e identidade LGBTQIA+

Em 2020, ano de falecimento de Fernanda Benvenutty, Gabriella e Ayira, mestranda em antropologia, decidem lançar a Casa das Benvenutty, impulsionando a cultura ballroom em João Pessoa.

O movimento ballroom surgiu no século passado, nos Estados Unidos, especialmente entre a comunidade negra e latina LGBTQIA+ de Nova York, como uma resposta à exclusão e ao preconceito enfrentado em concursos de beleza e espaços tradicionais.

Esse movimento cultural se consolidou em “balls” (bailes) organizados por “houses” (casas). As casas funcionam como famílias escolhidas para pessoas marginalizadas, que ali encontram acolhimento e suporte.

Durante os bailes, os participantes competiam em diversas categorias, desfilando, dançando e performando em busca de reconhecimento e troféus. O voguing, estilo de dança caracterizado por poses inspiradas em editoriais de moda, se tornou um dos elementos mais icônicos do universo ballroom e inspirou Madonna no clássico Vogue, lançado em 1990.

Madonna foi introduzida a essa cena underground através de dançarinos e coreógrafos que faziam parte da comunidade ballroom, como José Gutiérrez Xtravaganza e Luis Camacho Xtravaganza, membros da lendária House of Xtravaganza. A canção Vogue e seu videoclipe ajudaram a levar o voguing para o mainstream, tornando a cultura ballroom mais conhecida.

Atualmente, o movimento ballroom segue vivo e influente na cultura pop, na moda e na música, tendo ganhado reconhecimento mundial e sido representado em excelentes produções como o documentário Paris Is Burning (1990), a série Pose (2018) e o reality show RuPaul’s Drag Race, que estreou em 2009 e se tornou um fenômeno global, ajudando a difundir elementos da cultura drag e da cena ballroom.

A ballroom é um espaço de resistência, de celebração e de construção de laços de comunidade. A cultura ballroom nasce nos Estados Unidos como um espaço de acolhimento para corpos dissidentes, jovens LGBTQIAPN+, principalmente pessoas trans, em sua maioria mulheres trans e travestis negras em contexto da pandemia do HIV/Aids, que na época eram expulsas de suas casas e eram marginalizadas pela sociedade, isso na década de 60, 70. E no Brasil, especialmente na Paraíba, a cultura ballroom se inicia lá pra 2018, 2019, e ela tem se tornado um território de afirmação mesmo, de empoderamento e construção de outras narrativas”, comenta Gabi Benvenutty.

A minha trajetória na ballroom ela se entrelaça com a minha militância. Eu tô na comunidade ballroom da Paraíba desde 2019. Já fui da Casa da Baixa Costura lá em 2019. Em 2020, que é o ano de falecimento da Fernanda, eu e Ayira decidimos lançar a Casa das Benvenutty, que nasce da necessidade de criar um espaço seguro e acolhedor, onde a maioria são de pessoas trans e negras, e que essas pessoas possam se sentir seguras, que a gente possa construir outro imaginário de família”, reforça.

Além de um espaço de expressão artística, ao longo de décadas, ballroom continua sendo um refúgio de resistência, identidade e empoderamento LGBTQIA+, especialmente para pessoas trans e negras.

Eu costumo dizer que na Paraíba, na Casa das Benvenutty, eu redescobri o significado de família. A comunidade ballroom me ensinou que resistir também é sobre criar, sobre construir, sobre imaginar, sonhar, e poder existir em potência entre as minhas. E a gente segue fazendo isso, seja na cena ballroom, seja na política ou seja nas ruas”, destaca Gabi Benvenutty, promessa de liderança social e renovação política em João Pessoa.