SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Tudo o que uma mãe deseja nos primeiros meses de vida de seu filho ou filha é vê-lo realizar alguns feitos, como engatinhar, fazer movimentos com as mãos para pegar algo ou tentar falar. Mas, quando Olivia tinha seis meses de idade, a gerente de marketing Ingrid Pelegrini, 31, e o piloto de avião Henrique Eifler, 29, passaram a notar como a filha primogênita estava um pouco atrasada no desenvolvimento em relação a outros bebês de mesma idade e buscaram ajuda médica.
Após ouvir de diferentes pediatras que não havia nada com a bebê que saltasse aos olhos e que ela era apenas muito “quieta”, o casal resolveu passar por uma consulta com uma neuropediatra. A médica solicitou uma bateria de exames, incluindo um teste genético especializado.
O resultado laboratorial veio seis dias antes de Olivia completar um ano de idade: deleção das porções 3 e 4 do gene MECP2, ou diagnóstico de síndrome de Rett, uma doença genética rara cuja manifestação se dá por volta do primeiro ano de vida e que tem implicações no desenvolvimento neuromotor.
Foi um baque para os pais -não só por ser uma síndrome até então desconhecida mas também porque a doença, segundo as pesquisas feitas por eles na internet, pode variar de poucos sintomas, como uma criança introspectiva e com comportamentos irritadiços, até incapacidade na fala, problemas respiratórios e crises convulsivas.
“Perdemos o chão, foi como levar um soco. De uma hora para a outra víamos que nossa filha tinha uma doença rara e que ela poderia precisar de ajuda a vida inteira. Tudo aquilo que desejamos, como pais, foi abalado”, conta Ingrid, com a voz embargada, à Folha. “Mas ao mesmo tempo vimos que não era algo tão grave, que havia um fio de esperança.”
Rett é uma síndrome que possui semelhanças com espectro de autismo, embora não seja classificada como tal. O diagnóstico é dado por um exame chamado Exoma, oferecido em poucos laboratórios no país, e que busca uma mutação no gene MECP2, encontrado no cromossomo X, responsável por produzir uma proteína que ativa ou silencia (“desliga”) outros genes, muito presente nos neurônios.
Assim, mutações nesse gene podem levar a erros de sinapse e atrapalhar o desenvolvimento de funções cognitivas e motoras. Como os meninos possuem apenas um cromossomo X, a presença dessa mutação costuma ser fatal.
Já o sexo feminino possui dois cromossomos X, então a presença de uma cópia normal no outro cromossomo pode equilibrar o gene defeituoso. Por isso, a síndrome pode se manifestar com poucos sintomas ou até tardiamente.
A incidência de Rett estimada é de 1 a cada 20 mil meninas. A doença, como muitas outras raras, é subnotificada devido ao alto custo do exame, à baixa oferta de laboratórios com esse serviço e até mesmo à semelhança com outras doenças neurológicas complexas, como esquizofrenia e epilepsia.
Esse cenário pode mudar. Desde 2020, o Hospital Israelita Albert Einstein vem desenvolvendo um projeto para mapear genomas de doenças raras por meio do sequenciamento genético em todo o país. Além de permitir o diagnóstico de pacientes com condições genéticas pouco ou desconhecidas, o estudo vai proporcionar um grande banco de dados genômicos das principais mutações envolvidas em algumas das doenças.
Coordenado pelo imunologista e geneticista João Bosco Oliveira Filho, o projeto Genomas Raros é uma parceria do Einstein com o Ministério da Saúde e está inserido no guarda-chuva do estudo DNA do Brasil, que visa mapear o genoma da população brasileira.
“Buscamos pacientes que já estão inseridos no sistema de atenção integral a doença rara espalhados pelo país, mas, além de oferecer uma orientação mais adequada, nosso objetivo é também treinar e especializar os profissionais na ponta”, afirma.
A importância de identificar e catalogar as alterações genéticas envolvidas em algumas das doenças raras reside em apenas oferecer o diagnóstico -e o tratamento, quando existente- correto para doenças raras e fornecer a base do conhecimento científico sobre elas.
Embora a doenças raras possam parecer pouco frequentes e, assim, serem negligenciadas, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) há mais de 9.000 delas, com uma incidência, só no Brasil, de cerca de 13 milhões de pessoas (6,2% da população).
“Individualmente chamamos uma doença de rara quando ela apresenta uma frequência de menos de 1 para cada 2.000 pessoas. Então ela começa a se tornar um problema relevante de saúde pública quando 13 milhões de pessoas carregam essas condições, e a grande maioria é subdiagnosticada.”
Um dos pontos-chave do projeto é reduzir o tempo de diagnóstico da doença genética, hoje em média de sete anos, afirma Oliveira. O projeto atingiu o marco de mil genomas sequenciados desde dezembro em abril de 2021. A expectativa é chegar a 8.000 sequências até 2024.
Desde abril, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) incluiu o Exoma no rol de exames com cobertura por planos de saúde. Antes, a ANS preconizava a obrigatoriedade do exame apenas quando havia uma solicitação feita por um geneticista; agora, neurologistas, neuropediatras, oncologistas clínicos e imunologistas podem fazer o pedido.
Segundo Alysson Muotri, geneticista brasileiro e professor do Departamento de Pediatria e Medicina Molecular da Universidade da Califórnia, em San Diego, existem cerca de mil genes e mais dezenas de milhares de mutações genéticas descritas que podem causar síndromes parecidas com Rett ou dentro do espectro de autismo e o principal entrave no país é a falta de investigação genética.
“Há diversas situações que podem gerar atraso no desenvolvimento nos primeiros meses ou anos de idade que podem ser semelhantes ao autismo. Uma forma de distinguir os principais tipos de autismo e buscar um tratamento mais personalizado é por meio do sequenciamento genético. No Brasil, a falta de um conhecimento médico e o alto custo desses exames fazem com que a maioria não tenha acesso ao diagnóstico.”
Antes de realizar o exame, os pais de Olivia, que moravam em Hong Kong, consultaram diversos especialistas, sem sucesso. De volta ao Brasil pouco antes do início da pandemia da Covid-19, eles finalmente conseguiram ter o diagnóstico da condição da filha após desembolsar R$ 5.000.
Muotri explica que algumas mutações não geram sintomas e esses indivíduos não são identificados, uma vez que só seriam descobertas com o exame de sequenciamento. “Nós estudamos esses casos para tentar entender o porquê disso, se existe uma causa genética protetora, mas alguns casos nunca são identificados.”
Os pais de Olivia buscam meios de oferecer a ela os estímulos necessários, mas muitos dos sonhos que tinham para a filha deixaram de existir. “Percebi que estes eram sonhos meus, e não dela, e que para ela a felicidade estava em coisas mais simples. Essa conscientização para mim foi fundamental, e também poder falar sobre, para que isso nunca fosse um tabu dentro de casa”, diz.
Ela ganhou uma irmã mais nova em março deste ano, mas, como a gravidez não foi planejada, os pais não pensaram em fazer o acompanhamento genético pré-natal. “A minha esperança é que mais pessoas possam conhecer Rett até mesmo para dar um respaldo aos pais e dizer ‘vai ficar tudo bem, não é o fim do mundo'”, diz.