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Telegram e o desafio de combater fake news nas eleições
03/01/2022 / 10:48
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Um grupo do Ministério Público Federal (MPF) quer impedir a propaganda eleitoral em serviços como o Telegram, um aplicativo russo, na campanha política deste ano. A plataforma tem sido usada para abrigar bolsonaristas foragidos, como mostrou o Estadão, e o presidente Jair Bolsonaro incentiva apoiadores a migrar para a rede, onde conta com mais de um milhão de seguidores e se sobressai entre os demais pré-candidatos ao Palácio do Planalto.

A avaliação de que o Telegram não pode servir de palanque para divulgar fake news é respaldada por procuradores que atuam diretamente no combate a crimes cibernéticos e vem sendo compartilhada internamente como proposta de atuação nas eleições. Especialistas apostam que o assunto acabará sendo julgado por tribunais.

O argumento é baseado no fato de o aplicativo russo, com sede em Dubai, não ter representação no Brasil e não cumprir ordens da Justiça. E, com a dinâmica de uma campanha acirrada como a que se vislumbra, as propagandas dos candidatos não poderiam se desenrolar em um ambiente descontrolado. O mesmo princípio se aplicaria a outras redes que passaram a ser usadas por bolsonaristas para driblar banimentos, como Gettr, Parler e Gab.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, enviou no último dia 16 um ofício ao Telegram, por e-mail, solicitando audiência com Pavel Durov, fundador da empresa. Barroso pediu um encontro para discutir cooperação contra a desinformação que circula no Telegram e afeta a confiança nas eleições brasileiras. O ministro solicitou, ainda, que Durov indique um representante da empresa para dialogar com o TSE. Até agora, não obteve resposta.

O aplicativo tem ignorado pedidos de colaboração das autoridades brasileiras e representa agora uma das principais preocupações da Justiça com disseminação de notícias falsas, discurso de ódio e outros crimes. Com regras de funcionamento menos rígidas, atrai extremistas banidos de redes como Facebook, Twitter e YouTube.

É via Telegram, por exemplo, que o blogueiro foragido Allan dos Santos continua promovendo ataques a instituições após ter contas excluídas das outras plataformas. Foi por meio desse aplicativo, ainda, que o caminhoneiro extremista Zé Trovão se manteve ativo na internet enquanto era procurado pela Polícia Federal.

Estratégia

Bolsonaro intensificou a estratégia de convidar apoiadores para que o acompanhem no Telegram, mas não é o único pré-candidato que se comunica por esse app. Líder nas pesquisas de intenção de voto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também utiliza a ferramenta e tem cerca de 46 mil seguidores. O canal de Ciro Gomes (PDT), por sua vez, conta com 19 mil.

Nos últimos dias, diante das críticas por ter saído de férias no fim do ano passado, ignorando a tragédia provocada pelas chuvas na Bahia, Bolsonaro recorreu ao canal alternativo para se defender. Publicou o que definiu como “verdade das informações que você jamais verá” na imprensa e listou órgãos do governo que estão atuando para mitigar os impactos do temporal.

Na prática, o entendimento que poderia barrar a propaganda no Telegram na campanha é uma interpretação do que está disposto na Lei das Eleições, de 1997, na resolução sobre propaganda editada pelo TSE para as disputas de 2020 e na minuta sobre o tema para este ano.

Os textos exigem que “sítios” de candidato, partido e coligações estejam hospedados em provedor de internet estabelecido no País. Procuradores argumentam que ambos os conceitos englobam o Telegram. Como provedor de aplicação entende-se “o conjunto de funcionalidades” que podem ser acessadas após uma conexão à internet. Apesar de “sítio” sugerir “site”, uma página do candidato ou do partido, o termo é interpretado como qualquer espaço em que se optar por fazer propaganda.

“Qualquer propaganda eleitoral no Telegram é completamente irregular, independentemente do seu conteúdo”, diz a procuradora regional eleitoral do Rio de Janeiro, Neide Cardoso de Oliveira, também coordenadora adjunta do Grupo de Apoio sobre Criminalidade Cibernética do MPF.

A interpretação foi divulgada em seminário organizado pela Procuradoria Regional Eleitoral, em São Paulo, que no início de dezembro tratou de ações da instituição na campanha de 2022. Neide foi escalada para apresentar aos pares aspectos da legislação sobre uso da internet nas eleições. O encontro virtual foi aberto pelo vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, o número dois do procurador-geral da República, Augusto Aras, no TSE.

Polêmica

A principal crítica ao argumento de que é necessário impedir a propaganda eleitoral pelo Telegram reside no fato de que resoluções permitem essa prática em serviços de mensagem, redes sociais e blogs sem a exigência de hospedagem em provedores estabelecidos no País.

“Para mensagem eletrônica, que é onde o Telegram está efetivamente colocado pela Lei das Eleições, não tem a vinculação de precisar ser hospedado no Brasil”, disse a advogada Samara Castro, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). “Se a gente vedar o Telegram, entendo que a gente terá uma medida excessiva.”

Doutor em Direito e diretor do InternetLab, centro de pesquisas sobre tecnologia e Direito, Francisco Brito Cruz também não considera irregular a propaganda no Telegram. “Não acho que dá para cravar que propaganda eleitoral no Telegram é proibida por definição. O que dá para cravar é que propaganda paga no Telegram é proibida. E dá para discutir uma série de problemas a partir do momento que se escolhe fazer propaganda no Telegram”, destacou Cruz.

Para a procuradora Neide, porém, a redação dos dispositivos é falha nesse aspecto. “Embora não esteja dito claramente, não teria sentido a lei falar que os sites têm de estar em provedor estabelecido no País e o resto pode estar onde quiser, pode fazer o que quiser que não vamos incomodá-lo”, afirmou ela ao Estadão. “Não tem sentido deixar todo o resto do que pode ser realizado na internet fora da previsão. Até porque fazer campanha no site de um candidato é algo que não faz sentido mais.”

Risco

O fato de o Telegram ignorar decisões judiciais provoca riscos, como o de que propagandas consideradas irregulares permaneçam no ar, sem que direitos de resposta sejam concedidos. Isso não impede, no entanto, que os candidatos sejam punidos com multas por propaganda irregular.

“Se a nossa legislação tem essa brecha de alcançá-los de alguma forma, temos de utilizá-la”, defendeu Neide. “Se formos dizer que o Telegram não tem problema, mesmo não tendo representação no País, (o candidato) poderá fazer propaganda negativa, desinformação, qualquer coisa”.

O Marco Civil da Internet, de 2014, estipulou punições que vão de multa a banimento para provedores que descumprirem ordens da Justiça para compartilhamento de alguns tipos de informações. O descumprimento rendeu, por decisão de juízes de primeiro grau, bloqueios do WhatsApp.

O assunto é discutido em duas ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) e podem ter repercussão no caso do Telegram. As ações estão travadas desde maio de 2020 por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Alvo preferencial das redes bolsonaristas, Moraes será o presidente do TSE a partir de agosto, durante a campanha de 2022.

O documento enviado pelo ministro Barroso ao fundador do Telegram também foi encaminhado pelos Correios, segundo o TSE, que aguarda a confirmação da entrega do ofício via postal e a resposta ao e-mail. Dados citados pelo tribunal indicam que o aplicativo russo está presente em 53% dos smartphones ativos no Brasil.

O Estadão questionou o TSE e o Itamaraty sobre outras iniciativas para tentar viabilizar o contato com o Telegram em Dubai, como uma visita presencial. A Corte Eleitoral respondeu ter feito um “contato informal”, em agosto de 2020, com a embaixada em Abu Dhabi. A embaixada apenas “informou o e-mail de contato do Telegram”.

O Itamaraty, por sua vez, destacou que, como não existe tratado para cooperação jurídica entre o Brasil e os Emirados Árabes, os pedidos tramitam por meio de cartas rogatórias por via diplomática. A Divisão de Cooperação Jurídica Internacional tem duas cartas solicitando a intimação do Telegram nos Emirados Árabes Unidos.

O Ministério de Relações Exteriores disse, porém, que não cabe ao Itamaraty envolver-se em atos de intimação fora da jurisdição brasileira. “Nesse contexto, não se trata de gestão diplomática junto à chancelaria dos EAU (Emirados Árabes Unidos) por parte do Itamaraty e de sua embaixada em Abu Dhabi, mas, sim, do envio procedimental da documentação judicial brasileira à missão diplomática brasileira nos EAU, que, por sua vez, a encaminha à chancelaria emirática, com solicitação de bons préstimos para o seu cumprimento pelas autoridades judiciárias locais”, informou o ministério.

Em novembro, o Estadão esteve no prédio onde funciona o escritório do Telegram em Dubai. Não há qualquer identificação aparente de que de lá se opera o aplicativo. A sede fica no 23º andar de um conjunto de escritórios comerciais, na Torre A do Business Central Towers. A segurança do edifício não permitiu a entrada da reportagem.

O Telegram fica próximo ao centro de negócios do emirado, numa região moderna de arranha-céus que os xeques desenvolveram para atrair empresas de tecnologia e telecomunicações. O bairro é conhecido como Cidade da Internet, ao lado da Cidade da Mídia, e lá ficam as sedes de operadoras de telefonia locais e multinacionais como a norte-americana Oracle e a gigante chinesa Huawei.

O aplicativo se transferiu para Dubai após embates com o governo russo, sob a justificativa de que ali teria vantagens tributárias. Um dos irmãos fundadores se reuniu com a família real que governa o emirado ­- o encontro, em abril, foi com o príncipe herdeiro, Hamdan bin Mohammed Al Maktoum.

“Para ser verdadeiramente livre você deve estar preparado para arriscar tudo pela liberdade”, escreveu nas redes sociais Pavel Durov, que costuma postar fotos enigmáticas da vida no deserto.

Do Estadão