O inclemente avanço do garimpo ilegal em território Ianomâmi traz no rastro de suas desgraças já conhecidas, como devastação da floresta, malária, contaminação de rios e fome, novos episódios de terror ao dia a dia da maior terra indígena do país, hoje cercada por mais de 20 mil garimpeiros. Por lá, onde estão cerca de 350 comunidades (quase todas, incluindo as de índios isolados, afetadas pela ação do garimpo), os indígenas são reféns de um esquema criminoso que envolve aliciamento, assédio de menores, violência e abuso sexual contra mulheres e crianças, algumas embriagadas por bebidas alcoólicas e estupradas até a morte.
Com pouca oferta de caça e pesca em razão da destruição do meio ambiente e debilitados por doenças que os impedem de buscar o próprio alimento, jovens indígenas estão sendo forçados a trabalharem para os garimpeiros, que vendem porções de arroz que sobram dos acampamentos em troca de alguns gramas de ouro. Os invasores se aproveitam da fome em algumas comunidades e propõem a troca de comida por sexo, escolhendo adolescentes e mulheres para dormirem com eles.
Relatos de pesquisadores indígenas, antropólogos e tradutores das seis línguas faladas entre os ianomâmis, reunidos em relatório que a Hutukara Associação Yanomami lança amanhã e ao qual O GLOBO teve acesso com exclusividade, revelam que ao menos três crianças e adolescentes entre 10 anos e 13 anos foram mortas depois de serem abusadas por garimpeiros, na região central do território conhecida como polo-base Kayanaú. As mortes ocorreram em 2020, mas agora, após entrevistas com indígenas nas aldeias mais afastadas e afetadas pelo garimpo, é que elas vieram à tona.
Moradores da comunidade Apiaú descrevem cenas de abuso sexual de mulheres indígenas semelhantes às de Kayanaú. Segundo um relato, um garimpeiro ofereceu drogas e bebidas a indígenas, e quando todos já estavam bêbados, estuprou uma criança.
O Ministério Público Federal de Roraima e a Polícia Federal já receberam denúncias de crimes parecidos em outras regiões, mas casos específicos de estupro e morte por abuso em terras indígenas até então não foram investigados no âmbito federal.
— Vamos nos inteirar das denúncias para ver como agir diante do desafio gigantesco de apurar esses tipos de crimes em território tão vasto. Mas certamente vamos investigar, pois há pelo menos três crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis; trabalho escravo, que é um crime contra os direitos humanos; e também um crime contra o Estatuto do Índio que é a disseminação de bebida alcoólica entre indígenas de recente contato — diz o procurador Alisson Marugal, que atua no MPF em Roraima.
Para o vice-presidente da Associação Hutukara Yanomami, Dário Kopenawa, o aliciamento dos jovens por grupos criminosos também ocorre nas comunidades indígenas.
— A questão do aliciamento de minoria jovem ianomâmi é a mais nova estratégia do garimpo ilegal. Enganam dando a ilusão de que vão ficar ricos com ouro e cassiterita. Cachaça, espingarda, cartuchos e celulares, tudo eles dão para que não sejam denunciados às autoridades. É uma relação de escravidão, exploração— afirma Kopenawa.
Espingardas e cachaça
Segundo dados do relatório, a estratégia dos garimpeiros ao se aproximarem dos indígenas segue sempre o mesmo modus operandi: eles tentam cooptar os mais jovens com ofertas de espingardas, cachaça e celulares e pagam em dinheiro e ouro pelos serviços prestados, como os de barqueiro, mateiro e também de garimpagem.
Pesquisadores que participaram da coleta de dados do relatório, ouvidos pelo GLOBO na condição de anonimato por temerem represálias, narram que os homens do garimpo esperam as indígenas terem a primeira menstruação para começar a assediá-las junto às famílias, oferecendo comida, trabalho ou ouro para que elas “se deitem” com alguns deles.
“Depois que os garimpeiros que cobiçam o ouro estragaram as vaginas das mulheres, fizeram elas adoecerem. Por isso, agora, as mulheres estão acabando, por causa da letalidade dessa doença (sífilis). Estão transando muito com as mulheres. É tanto assim que, em 2020, três moças, que tinham apenas por volta de 13 anos, morreram. Os garimpeiros transaram muito com essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo apenas tido a primeira menstruação”, diz um dos relatos de uma indígena da região do Kayanaú.
Os pesquisadores apontam que, com o aprofundamento das relações com o garimpo, muitas famílias deixaram de cultivar suas roças e tornaram-se dependentes de trocas desiguais. “Alguns trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprarem nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam um grama de ouro ou R$ 400”, diz trecho do documento.
Com fome, indígenas relatam que, ao pedirem comida aos garimpeiros, são humilhados e recebem ofertas de alimento em troca de sexo. “Vocês não peçam nossa comida à toa. Você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida”, foi uma das ameaças relatadas aos pesquisadores.
— Eles pedem as filhas menores para as mulheres adultas e os homens mais velhos — diz uma das pesquisadoras, apresentando mais um relato, sobre o discurso dos garimpeiros. — “Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrissar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará. Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!”. Na sequência, eles apalpariam as moças.
Outro pesquisador conta que os garimpeiros entregam perfumes às mulheres quando querem sexo. Prometem saias, ouro, drogas. De acordo com os relatos, eles somente conseguem aliciar as mulheres depois que elas bebem: “Os garimpeiros não conseguem transar com as mulheres que não tomaram cachaça. Somente as que não temem contrair doença, não têm medo; as outras não atendem às insistências”, diz o relatório.
Moeda de troca
De acordo com o presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuanna (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, os garimpeiros não querem mais confusão com os indígenas e adotaram o aliciamento de jovens e adolescentes.
— Estão levando muito dinheiro para as aldeias. Eles cooptam jovens entre 10 anos e 15 anos. As mães choram, já estão se acostumando com um mundo que não é da floresta, que foi invadida — diz Hekurari.
O médico e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Paulo Basta, especialista em saúde indígena que acompanha de perto situação dos ianomâmis, credita o agravamento do quadro sanitário e o aumento de doenças como malária à presença de garimpeiros. Ele confirma a troca de sexo por comida em algumas situações.
— Dentro das florestas existem mais de 20 mil homens trabalhando todos os dias sem parar. Não há entretenimento, formas de aliviar o estresse ou pensar a vida fora daquele lugar. O que acontece é que os garimpeiros assediam mesmo as mulheres indígenas. Trocam sexo por alimentos, que, em sua grande maioria, são de baixa qualidade nutricional. Essa moeda de troca quase sempre dá certo, principalmente porque a insegurança alimentar entre os indígenas é muito grande — afirma Basta.
Procurado, o Ministério da Saúde admite enfrentar dificuldades em levar medicamentos ao polo-base de Kayanaú, tomado pelo garimpo. Em nota, a pasta diz contar com o apoio da Força Nacional de Segurança para a entrega de medicamentos e que “até a segunda quinzena do mês de abril” deve recuperar o posto de saúde, que está desativado. “Está em processo de reabertura com fixação de equipe multidisciplinar de saúde indígena”, afirma.
Também procurado, o Ministério da Justiça diz que as denúncias devem ser tratadas com a Fundação Nacional do Índio (Funai). A Funai, porém, não retornou aos pedidos de esclarecimentos.
Informações: O Globo