DHIEGO MAIA
GONÇALVES, MG (FOLHAPRESS) – A travesti Roberta Nascimento da Silva, 32, não tinha teto nem paradeiro. Qualquer lona já servia de abrigo. Sempre era vista nas imediações do Cais Santa Rita, no centro do Recife, junto a outras pessoas em situação de rua.
Na madrugada da última sexta-feira (25), ela foi alvo de um ataque que gerou protestos na capital pernambucana nesta segunda-feira (28), quando é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+.
Um rapaz de 17 anos jogou álcool em seu corpo com o propósito de queimá-la e matá-la, segundo apurou a Polícia Civil. As chamas se alastraram rapidamente pelo corpo da vítima, causando queimaduras graves no abdômen, no tórax, nos braços e em uma das pernas. Roberta teve 40% de seu corpo queimado. O adolescente foi apreendido horas depois do crime.
A vítima foi socorrida por uma equipe de resgate do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e levada para o Hospital da Restauração Governador Paulo Guerra, unidade vinculada à secretaria estadual de Saúde que possui um centro de tratamento para queimados.
No trajeto até a unidade, Roberta foi questionada sobre seu nome e idade. Com muita dificuldade, ela conseguiu dizer seu nome de registro e que tinha 40 anos. Essa informação foi usada pela Polícia Militar e pela equipe do Samu para fazer o cadastro da paciente, e Roberta, que deveria ter sido internada inicialmente na ala feminina, acabou no setor masculino.
Ela só mudou de ala e teve seu cadastro alterado com o seu nome social após a intervenção de ativistas. “Quando cheguei ao hospital, ela estava na ala masculina. Prontamente conversamos com ela e intervimos na situação”, disse Robeyoncé Lima, codeputada do PSOL de Pernambuco.
Via assessoria de imprensa, o hospital disse que, ao tomar conhecimento de que a paciente era travesti, logo fez as mudanças necessárias e ressaltou que a demora em levar a paciente para o setor onde ficam as mulheres aconteceu por falta de informações oficiais e pelo estado em que Roberta deu entrada na unidade.
O quadro clínico da travesti só piorou. No dia seguinte à internação, no sábado (26), a equipe médica que a atendia constatou uma necrose profunda no braço esquerdo causada pela queimadura. O membro foi amputado para o estado de saúde da paciente não piorar ainda mais, segundo a assessoria de imprensa do hospital.
Roberta seguiu intubada após o procedimento cirúrgico porque apresentava muita secreção em seus pulmões e não conseguia respirar sozinha.
Na manhã desta segunda, já consciente, ela passou a respirar sem a ajuda de aparelhos, mas seu quadro clínico permanece crítico.
Além de gerar protestos locais, a violência contra a travesti comoveu ativistas travestis e celebridades. O comediante e youtuber Whindersson Nunes disse em uma rede social que enviou, por meio de um amigo, flores e um bilhete à Roberta.
“Tenho uma amiga trans que falou de Jesus para mim [de uma forma] muito bonita quando eu tinha perdido a fé, e esse amor voltou. […] Toda vez que eu penso nela, tenho medo que alguém faça algo assim do nada, porque é uma realidade”, disse Nunes.
O comediante Marcelo Adnet classificou o caso como “um horror” e disse que se prontificava a prestar ajuda à vítima.
As investigações da Polícia Civil chegaram até o rapaz de 17 anos porque ele foi visto na mesma barraca de lona em que Roberta estava antes do crime. Assim que foi apreendido, o jovem recebeu cuidados médicos em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e, após ser ouvido oficialmente, “foi autuado por ato infracional análogo à tentativa de homicídio qualificado”, disse a Polícia Civil de Pernambuco em nota.
Após avaliação do Ministério Público, o jovem foi encaminhado para a Unidade de Atendimento Inicial, da Secretaria de Criança e Juventude, para onde são levados os adolescentes envolvidos em crimes.
A Folha de S.Paulo perguntou à Polícia Civil e ao Ministério Público se o rapaz também será responsabilizado pelo crime de transfobia, mas as duas instituições não se manifestaram.
Em resposta ao prefeito do Recife, João Campos, (PSB), que disse numa rede social acompanhar o caso de Roberta por meio de sua Secretaria de Desenvolvimento Social, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) afirmou que “o estado de Pernambuco está entre os dez mais violentos e com os maiores dados de assassinatos de pessoas trans do Brasil, com muitos casos na capital”.
“Precisamos de políticas específicas para enfrentar essa violência que segue negligenciada”, disse a entidade.
O Brasil é considerado o país que mais mata pessoas transgênero entre as grandes nações, de acordo com rankings internacionais. Em 2020, foram contabilizados 175 casos de assassinatos entre pessoas trans e travestis no país -alta de 41% em relação ao ano anterior. Nos quatro primeiros meses deste ano, outras 56 mortes violentas foram registradas, de acordo com mapeamento da Antra.