Os contribuintes de ICMS assistem mais um capítulo da novela que gira em torno da tributação. Dessa vez, o cenário é o julgamento pelo STF da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 49 – ADC, na qual declarou a inconstitucionalidade dos artigos da Lei Complementar n.º 87/1996 (Lei Kandir) que previam a incidência do imposto na saída de mercadoria para estabelecimento do mesmo titular. Para ilustrar a sistemática, até a ADC 49, caso uma empresa-matriz situada na região sul do país remetesse uma mercadoria para sua filial no Nordeste teria de emitir nota fiscal de transferência, com o destaque e o recolhimento de ICMS.
O ICMS recolhido nessa operação entrava na conta gráfica de ambos os estabelecimentos, gerando débito para o estabelecimento remetente e crédito para o destinatário físico da mercadoria, segundo o princípio da não-cumulatividade – que evita a incidência em cascata de um mesmo imposto nas cadeias econômicas seguintes. Diversos planejamentos societários foram estruturados sob essa sistemática do direito ao crédito, o qual favoreceu, inclusive, a criação de vários centros de distribuição nos estados do Nordeste, com vantagens de logística e custos mitigados pela transferência dos créditos do ICMS cobrados na operação anterior.
É bem verdade que a jurisprudência e a doutrina já sufragavam a não incidência nessas operações de transferências. Nesses casos (transferências de mercadorias para unidades federativas diversas) a incidência do imposto tem um duplo fundamento: (i) respeito ao federalismo fiscal, garantindo a arrecadação para o estado de origem; e (ii) preservação da não-cumulatividade, evitando a supressão do crédito do ICMS já cobrado na mesma mercadoria.
Com a decisão do STF, o direito ao crédito de ICMS está comprometido, pois a não tributação dessa saída gera o argumento fazendário de anulação dos créditos gerados no estabelecimento de origem (o remetente). Nesse ambiente de insegurança jurídica, o STF também decidirá a propósito da modulação dos seus efeitos para o exercício financeiro subsequente à conclusão do julgamento.
Pensamos que a simples modulação temporal não resolve os graves problemas gerados pela decisão, no que tange às entradas tributadas por ICMS que antecedem as operações de transferências. O direito ao crédito tem matriz constitucional no princípio da não-cumulatividade e, por isso, não pode ser deixado ao alvedrio do entendimento de cada estado da federação, especialmente nos casos em que o estabelecimento de origem não consiga aproveitar o crédito gerado na sua conta gráfica de ICMS.
O ponto chave reside na compreensão de que nem mesmo a retirada do ordenamento jurídico do art. 11, §, 3º, II, da Lei Kandir (autonomia dos estabelecimentos do mesmo titular) tem o condão de esvaziar o direito ao crédito, porquanto é norma de índole constitucional (art. 155, § 2º, II, da CF). Além disso, o estorno do crédito pressupõe uma “operação” isenta ou não tributada, conforme art. 20, § 1º, da Lei Kandir e, pelas premissas da ADC 49, a transferência entre estabelecimentos do mesmo titular sequer traduz uma “operação de circulação de mercadoria”, logo não há fato gerador de ICMS, tampouco supressão dos créditos de tais mercadorias.
Outro ponto importante é a forma de aproveitamento dos créditos, evitando-se que seja remetida unicamente à deliberação do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ ou das Secretarias de Fazendas Estaduais. Todos os arranjos societários foram adotados com base na Lei Complementar n.º 87/1996, ou seja, confiando na estabilidade própria de uma norma emanada do Congresso Nacional, inclusive com fundamentos para reclamar a edição de lei complementar, já que o tema diz respeito ao regime de compensação do ICMS (art. 155, §2º, XII, “c”, da CF) e à guerra fiscal entre os estados (art. 146, I, da CF)
Nesse contexto, pensamos que o STF deva garantir o direito à compensação interestadual, até que sobrevenha lei complementar regulamentando o regime dessa compensação – solução proposta por vários dos amicicuriae na ADC 49. Não sendo esse o resultado do julgamento, restará ao contribuinte do ICMS reestruturar seus negócios ou se socorrer do Poder Judiciário para, caso a caso, garantir o direito aos créditos do ICMS gerados em estabelecimentos distintos da mesma pessoa jurídica localizados em outros Estados.
Geilson Salomão
Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor de Direito Tributário da UFPB. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Advogado. gesalomao@gmail.com
Eduardo Frade
Advogado e Professor Universitário. Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Especialista em Gestão de Cooperativas pela USP.
Thaciano Rodrigues de Azevedo
Advogado e Procurador do Município de João Pessoa. Mestrando em Direito (IDP-Brasília). Especialista em Direito Tributário pelo (IBET). Especialista em Direito Processual Civil.