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Estudante que perdeu vaga em curso da UFPB para reitor queria atuar na área de tecnologia
17/03/2022 / 11:46
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Erick Rangel, de 17 anos, é estudante de escola pública e está na lista de espera para o ingresso no curso de engenharia de produção, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). A primeira chamada da lista foi divulgada na última sexta-feira (11), mas não há mais vagas para os inscritos através das cotas para estudantes de escola pública. Também inscrito através desta cota, uma das pessoas que ocupou a vaga foi o reitor da própria instituição, Valdiney Gouveia.

Recentemente, o reitor compartilhou nas suas redes sociais que foi aprovado para o curso através das cotas destinadas aos estudantes oriundos de escola pública. Ele foi classificado com 638,9 pontos. A lista de espera pode ser conferida pelo site do Sisu.

Ao g1, o reitor da UFPB, Valdiney Gouveia, preferiu não se manifestar.

Reitor da UFPB Valdiney Gouveia passou para o curso de engenharia de produção pelas vagas reservadas para ingressantes de escola pública – Foto: UFPB/Reprodução

O g1 entrou em contato com a família do estudante, que ficou surpresa ao saber que o reitor utilizou o sistema de cotas. “Falta de ética da parte dele”, comentou Edineia Rangel, mãe do estudante.

Erick é natural de Vitória da Conquista, na Bahia, e atualmente mora com a família no município de Mirante, no mesmo estado. Edineia conta que seu esposo é pernambucano, filho de paraibanos, e que as tias de Erick moram em João Pessoa. “Eu tinha comentado com ele para morar com uma de suas tias e fazer o curso. A gente considerava o deslocamento da nossa cidade para João Pessoa”.

O estudante confessou que estava esperançoso com a possibilidade de ser aprovado através da chamada de espera: “Eu fiquei em 5º de quatro vagas, achei que se abrisse qualquer vaga, eu entraria através da lista de espera”, diz Erick. “Eu pretendia cursar, meu pai fez ensino médio em João Pessoa e também estava animado”.

Erick Rangel quase entrou para o curso de engenharia de produção na UFPB; ele ficou no topo da lista de espera dos candidatos que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas – Foto: Sisu/Reprodução

Quanto à utilização das cotas pelo reitor para ingressar no curso, o jovem lamenta: “se não fosse eu, outra pessoa estaria prejudicada”.

“A gente até brincou, pois a casa da tia dele é bem perto da universidade, a gente olhou no Google Maps”, comenta a mãe do estudante.

Erick Rangel tem 17 anos, é estudante de escola pública e mora na Bahia – Foto: Arquivo pessoal

O sonho em atuar na área de tecnologia

Filho de professores da rede estadual de ensino da Bahia, Erick destoa do restante da família pelo seu interesse por tecnologia. Sua mãe esperava que o filho optasse por algum curso na área de ciências biológicas. “Mas o sonho dele sempre foi nessa parte mais de tecnologias, né? Ele é mais dessa área de exatas”, diz Edineia.

“No começo, quando ele viu que tinha possibilidade de se deslocar até a Paraíba, ele estava ansioso. Mas quando recebeu o resultado da lista de espera, disse: ‘mãe, não foi dessa vez'”, relata.

O estudante queria passar em uma universidade federal, pois, segundo a mãe, a condição financeira da família não o permite estudar em uma faculdade particular no momento. Ele também afirma que escolheu o curso por desejo próprio, mas que seu pai também estava feliz com a possibilidade de ficar mais perto de parte da família na Paraíba.

“Eu sempre gostei muito da área de engenharia e, como dá para perceber, são muitas áreas. Então, quando eu fui crescendo, fui pesquisando algumas coisas sobre a engenharia mecânica, engenharia elétrica e engenharia de produção. Ficaram essas três que eu poderia seguir como curso superior. Na área de engenharia de produção, gostaria de atuar com engenharia de software”.

Erick estudou no colégio estadual da sua cidade e realizou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pela primeira vez no ano passado. Recém-saído do ensino médio, em meio a uma pandemia e há quase dois anos estudando através do ensino remoto, ele se queixa de sua preparação para o Enem. “Com a pandemia, meus dois últimos anos do ensino médio acabaram sendo bem fracos em termos de conteúdos abordados”, explica.

Tentar outra vez

A mãe de Erick aconselha o filho a continuar tentando. “Nós dizemos: estude para tentar novamente. Fazer o Enem para ver se consegue o acesso ao curso na Paraíba ou em qualquer outro lugar”, diz Edineia.

Família de Erick Rangel – Foto: Edineia Rangel/Arquivo Pessoal

Dessa vez, o estudante deseja tentar uma universidade mais próxima, no próprio estado da Bahia. Enquanto se prepara para realizar o Enem pela segunda vez, ele está cursando Análise e Desenvolvimento de Sistema (ADS), em uma faculdade privada na cidade onde mora com seus pais.

Para quem está na mesma situação que a sua, Erick recomenda uma boa preparação psicológica para o exame. “A prova consiste em um teste, é importante estar preparado de forma psicológica”.

O que dizem os juristas

O Ministério Público Federal (MPF) na Paraíba está apurando a legalidade do uso de cotas pelo reitor da UFPB para ingresso no curso da instituição ofertado através do Sisu.

O procurador da UFPB, Carlos Mangueira, informou que o que se pode dizer é que a Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012) não traz qualquer diferença de tratamento entre as pessoas que preenchem os critérios legais para ingresso.

Já o jurista Lenio Luiz Streck, professor dos cursos de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), interpreta que a atitude do reitor é ilegal. “Fere a isonomia, a igualdade e o princípio republicano se apropriar de uma vaga destinada a alguém que nunca fizera um curso, ao contrário dele, que já cursou dois bacharelados”, explica o jurista.

“Cotas são políticas públicas. Não deve haver atalhos ou fura-fila. Quem já cursou uma vez por cotas, não pode cursar mais uma vez. Pior ainda quando é o terceiro curso. O aluno prejudicado tem direito à vaga do reitor”.

“O fato de a lei das cotas não proibir expressamente não quer dizer que ele possa se aproveitar disso. Não está escrito que, em uma fila de distribuição de comida, o sujeito só pode pegar um prato. É óbvio que, se alguém pode servir uma segunda vez, todos devem poder. Mas, é claro, nesses casos deve ter comida para todos usufruírem o segundo prato. Ou terceiro”, argumenta Streck.

O jurista diz ainda que se o ato do reitor for legal, todas as pessoas poderão fazer segundo e terceiros cursos. “Ah, não tem vaga para todos? Pois é. Por isso mesmo é que o reitor não pode. Principalmente ele, que usou de vaga da própria Universidade em que é reitor. Nem sempre o que não é proibido é permitido. Se tem uma lei que diz que é proibido entrar com cachorro em um lugar, isso não quer dizer que seja permitido levar jacarés. Simples assim. O reitor errou. O sistema errou. A vaga é do rapaz da Bahia”, conclui.

O Sindicato de Professores da Universidade Federal da Paraíba (AdufPB) também se pronunciou, afirmando que do ponto de vista da legalidade talvez não exista empecilho, mas levantou dois questionamentos do ponto de vista ético:

  1. Tirar uma vaga de alguém que possa estar começando sua vida, vindo de escola pública, buscando a sua primeira graduação, tendo em vista a escassez de vagas disponíveis nessa modalidade. Ser cotista é pra quem necessita da cota, uma forma de reparação de inúmeras injustiças sociais cometidas pelo Estado. Será que esse sujeito, sendo professor titular da UFPB e reitor, ainda nas condições que se deram, sem o aval da comunidade universitária, precisa de cota para fazer uma segunda graduação?
  2. Os cargos de direção exigem integralidade e disposição. Como garantir a qualidade da gestão sendo estudante, ou a excelência de estudante sendo reitor? Talvez essas duas funções, do ponto de vista qualitativo, sejam incompatíveis, diz a nota da AdufPB.

Até o momento, a pró-reitoria da UFPB ainda não respondeu ao MPF e o caso segue sendo investigado.

Do g1 Paraíba