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Brasil entra na disputa por nômades digitais, profissionais que podem trabalhar de qualquer lugar
30/01/2022 / 10:38
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O Brasil entrou na disputa para atrair trabalhadores qualificados de alta renda que podem trabalhar de qualquer lugar, um estilo de vida que ganhou força com a digitalização acelerada pela pandemia.

O Conselho Nacional de Imigração, do Ministério da Justiça, regulamentou na semana passada a criação de um visto para os chamados nômades digitais, executivos, especialistas, gestores de investimentos, criadores de conteúdo e outros profissionais que só precisam de um laptop e uma boa conexão para produzir.

A ideia é permitir que estrangeiros possam ficar por um ano (com possibilidade de prorrogação) aqui, mesmo vinculados a empresas do exterior. A mudança abre oportunidades para setores como os de hospedagem e escritórios compartilhados.

O Relatório Global de Tendências Migratórias 2022 da Fragomen, empresa especializada em serviços de imigração mundial, estima que 35 milhões de profissionais tenham esse perfil no mundo e prevê que o número pode chegar a um bilhão em 2035.

Cerca de 40% deles têm renda superior a R$ 34 mil por mês e chegam a gastar em torno de R$ 4,2 milhões por ano.

24 países já têm visto
De olho nesse potencial de consumo em meio à crise do turismo, 24 países já criaram vistos sob medida para nômades na pandemia. A Estônia foi a primeira, seguida de outros como Grécia, Costa Rica, Croácia e Islândia.

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Muito antes dos nômades digitais virarem tendência, o contador nova-iorquino Vincenzo Villamena, de 39 anos, decidiu tentar a vida fora do estresse da Big Apple.

Em 2010, passou uma temporada em Buenos Aires para aprender espanhol e viu que poderia trabalhar à distância sem abandonar a carreira nos EUA.

Já viveu na Colômbia e agora divide a rotina entre a vida típica de carioca e um espaço da Hub Coworking, no Leblon, na Zona Sul do Rio. Dali ele comanda a Online Taxman, que é baseada nos EUA e tem outros 40 funcionários remotos.

— Queria muito este visto de nômade digital, mas não tinha. Vai ser muito bom. Muitas pessoas querem vir para cá e ficar mais de seis meses — diz Villamena, referindo-se ao prazo do visto de turismo.

Empresa 100% virtual
Embora registrada nos EUA, a empresa do engenheiro de software espanhol Momo Gonzalo, de 39 anos, é 100% virtual. Ele chegou ao Rio neste mês depois de temporadas em Portugal e Dinamarca sem se desligar do negócio. O próximo destino é Florianópolis.

— Conheci vários países e pessoas morando em locais onde talvez eu não iria nem de férias. No escritório, eu me reunia com colegas para comer ou discutir um problema. No remoto, isso não acontece. Todo mundo trabalha de forma muito independente.

O polonês Kamil Tyliszczak, desenvolvedor de software, mora há 12 anos no Brasil e trabalha desde outubro para uma empresa australiana. Ele é casado uma brasileira, com quem tem um filho de 2 anos, o que lhe garante visto permanente, mas atua como um nômade digital.

Sem precisar bater ponto num escritório, ele conseguiu trocar Marília, no interior de São Paulo, por São Bernardo do Campo, no ABC. A melhora de vida estava nos planos quando decidiu buscar emprego somente em agências internacionais.

— Não queria mais receber em reais — resume

O interesse dos países nos nômades digitais é a alta renda. Ainda que ele siga produzindo para a economia de outro país, seus gastos pessoais podem fazer diferença aqui. Muitos homens ou mulheres nessa situação trazem a família e ampliam o consumo, movimentando vários negócios, observa Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil:

— Além de fazer turismo, ele vai alugar um imóvel, pode comprar um carro, matricular o filho numa escola, ir à academia, utilizar serviço de salão de beleza, por exemplo. E não são vistos como ameaça concorrente à mão de obra local.

A Riotur, empresa de turismo da prefeitura carioca, criou uma comunidade para os nômades na internet, que reúne parceiros como hostels e espaços de coworking e até descontos para estimular a vinda deles para o Rio.

— Estamos agora à altura de países como Alemanha, Noruega, Bahamas — comemora a presidente da Riotur, Daniela Maia, sobre o novo visto.

Aposta em novo nicho
A Hub Coworking, que tem dez escritórios compartilhados no Rio, atribui parte do aumento de 15% no faturamento em 2021 à chegada de estrangeiros. O perfil que mais busca salas privativas por ali, que são as mais caras, é o de europeus com permanência média de um a três meses no país, diz Bruno Beloch, um dos sócios:

— É uma tendência, sem dúvidas.

Outro setor que investe nesse nicho é o de hospedagem. Para marcar sua aposta no novo estilo de vida, o CEO global do Airbnb, Brian Chesky, anunciou recentemente que vai trabalhar nos próximos meses saltando entre diferentes imóveis da plataforma de aluguéis temporários.

No Brasil, a start-up do ramo Tabas redirecionou seu negócio enxergar este potencial. Com 400 imóveis mobiliados em São Paulo e no Rio, quer chegar a 1.200 até o fim do ano, incluindo Brasília e Cidade do México.

Para a expansão, levantou cerca de R$ 76 milhões numa rodada de investimentos e firmou parcerias na Europa e nos EUA para oferecer uma espécie de plano sob medida para nômades.

— Com a visão de tornar a experiência do nômade global, a ideia é ter produtos globais. A pessoa aluga com a gente e consegue ficar em qualquer lugar do mundo — diz o CEO Leonardo Morgatto.

Chance de retenção
Para as empresas, o home office virou uma ferramenta para atrair talentos de qualquer lugar do mundo, principalmente na área de tecnologia. Das empresas consultadas pela Fragomen no mundo, 87% têm lacunas de habilidades na sua força de trabalho.

Atualmente, 43% das empresas já contratam globalmente com teletrabalho. Nos próximos dois anos, outros 22% passarão a contratar

Nessa disputa, o Brasil tem perdido profissionais para empresas estrangeiras sem necessidade de imigração. Mas o novo estilo de vida pode ajudar na retenção de talentos. Profissionais interessados em experiências no exterior podem viajar sem cortar laços com o empregador brasileiro.

Depois de se adaptar ao home office imposto abruptamente na pandemia, o designer carioca Pedro Segreto, de 46 anos, viu que poderia aplicá-lo em qualquer lugar. Uns dias na Serra fluminense, outros em Angra e então, com visto europeu, foi parar em Lisboa. Mas não abandou a empresa brasileira.

O maior desafio foi o dia a dia porque o seu trabalho consiste em processos de cocriação e design thinking com grandes equipes.

— Antes, montava uma sala criativa com um time. A gente passava o dia inteiro nas atividades. Na pandemia, tive que ajustar e testei ferramentas para fazer isso remotamente — diz o especialista, que continua atendendo seus clientes, grandes empresas brasileiras, à distância e pensa em explorar outros países europeus em home office.

Da experiência ao empreendedorismo
Esse estilo de vida também conquistou brasileiros que resolveram rodar o país sem deixar de lado o trabalho. Na pandemia, a gerente bancária Patrícia Corrêa, de 35 anos, passou a trabalhar numa espécie de home office itinerante.

Passava cada duas semanas por um lugar diferente, como Caraíva e a ilha de Boipeba, ambas na Bahia, combinando turismo com trabalho. Nesses destinos ela começou a encontrar outras pessoas na mesma situação.

Observando as delícias e agruras de uma vida sem endereço fixo, veio a ideia para concretizar o velho sonho de empreender. Ela pensa em criar um hostel especializado na recepção de nômades digitais. Tirou uma licença não remunerada do trabalho para continuar a viajar fazendo pesquisa de campo, dessa vez no exterior, para se preparar antes de investir.

— Eu já tinha vontade de abrir um hostel e nestas andanças, pela quantidade de pessoas fazendo isso, vi que a tendência é aumentar. Fui pesquisando e observando o que é importante para criar um ambiente para quem trabalha e viaja, como conforto, boa conexão e uma sala para reuniões, que alguns não tem, por exemplo — relata Patrícia, que também começou a trabalhar com fotografia.

Disputa por talentos em dólar
A área de inteligência global da Fragomen identifica que novas modalidades de vistos de trabalho serão a grande tendência migratória para 2022, devido à alta demanda por profissionais especializados, principalmente na área de tecnologia, e que foi agravada pela pandemia. Com isso, flexibilidade é uma arma para tentar reter os melhores funcionários.

— As empresas têm que cobrir as ofertas de empresas de fora, em dólar, e o mercado fica inflacionado. No setor de TI é muito mais, mas também vemos isso em áreas comerciais na América Latina e setores mais analíticos de finanças — explica Paulo Dias, diretor da consultoria de recrutamento Page Group, que atua em 50 países e compartilha entre eles vagas remotas.

Segundo Dias, o fluxo de brasileiros saindo é maior do que o de estrangeiros vindo trabalhar aqui. Para reter os brasileiros, o jeito é oferecer benefícios. E em 2022, o que vale mais que salário é tempo, diz ele:

— A empresa pode entender a real demanda do profissional e oferecer benefícios, não necessariamente monetizáveis, como horários adaptáveis, participação nos lucros ou sociedade. As empresas estão cedendo, senão acabam ficando para trás. Os melhores profissionais querem flexibilidade. Este é o principal atrativo.

O pagamento de impostos é um ponto importante. A sócia de Tributário do Tauil & Chequer Advogados, Carolina Bottino, explica que as regras tributárias dependem de cada visto e país.

Em geral, nos vistos de trabalho, o profissional paga impostos onde mora e trabalha. Brasileiros que vão trabalhar fora têm que declarar a saída para não pagar impostos duplamente. No caso do nômade digital, diz a advogada, ela entende que, na dúvida, o imposto deve ser pago aqui, mas isso vai depender de regulamentação da Receita para o novo visto.

— A Receita Federal vai precisar regulamentar este novo visto para que, depois de seis meses, que é o prazo de turista, o estrangeiro não seja tributado aqui. Se ele foi criado para incentivar a vinda ao Brasil, deve haver cooperação, senão fica numa zona cinzenta e traz riscos ao profissional.

Site para visto só está disponível em português
O anúncio do novo visto para nômades digitais agradou a estrangeiros interessados em usá-lo e setores que consideram o estímulo à vinda de deles importante para a economia. No entanto, o sistema Migranteweb, que recebe os pedidos de visto, virou alvo de críticas nas redes sociais.

A principal delas foi a falta de uma versão em inglês. Alguns internautas questionaram o fato de o site do Portal de Imigração ser todo em português, quando há interesse em atrair profissionais de fora. Além disso, alguns relataram dificuldades para acessar o sistema.

O Ministério da Justiça, ao qual o Conselho Nacional de Imigração (CNIG) está vinculado, reconhece a restrição ao português, mas informa que este “tema contará com folders em idiomas estrangeiros, que serão disponibilizados no site.”

Quanto às queixas sobre o acesso ao Migranteweb, a pasta diz não ter registrado nenhum erro. Quem tiver problemas para acessar a plataforma deve escrever para [email protected].

Informações: O GLOBO