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‘A maior parte dos problemas psiquiátricos é causada por um trauma’, afirma médico de Lady Gaga
05/07/2022 / 14:19
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No documentário “Gaga: Five Foot Two” (Netflix), a cantora e atriz nova-iorquina se despe dos alter egos que criou ao longo da carreira em uma tentativa de mostrar o ser humano por trás da artista que provocou a cultura pop vestindo carne e “sangrando” no palco da MTV.

Na produção, além de falar sobre sua fibromialgia, Gaga aborda questões como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e dores físicas e emocionais que carrega desde a época em que sofria bullying na escola até um estupro seguido de gravidez no início da carreira musical.

Agora, a artista assina o prefácio do livro “Trauma, a epidemia invisível”, recém-lançado no Brasil pela editora Sextante e escrito pelo psiquiatra americano Paul Conti, que dedica sua vida a ajudar as pessoas a se curarem de traumas.

Gaga, que chegou até o médico após sofrer um surto psicótico em Nova York, durante uma turnê mundial, conta que “hoje posso dizer com certeza que esse homem salvou a minha vida […] Precisamos de pessoas que acreditem em nós para que nossos traumas possam ser curados”.

Em entrevista ao jornal O GLOBO, Paul Conti fala sobre como o trauma está por trás de muitas doenças psiquiátricas e como o sistema de saúde não está preparado para resolver esse problema. Ele alerta para as alterações fisiológicas que o trauma pode criar, incluindo mudanças no cérebro e em todo o organismo, e ressalta que há cura e ela é mais simples do que as pessoas imaginam.

“Nós vemos alterações dos pés à cabeça. O trauma impacta o cérebro, faz com que ele funcione de maneira diferente e tudo é controlado pelo órgão. Então o funcionamento dos neurônios, da memória, do sistema límbico – que controla as emoções -, do sistema imunológico, do sistema endócrino, muda. Tudo muda. A memória das pessoas muda. As emoções mudam. Os níveis de hormônio do stress ficam altíssimos. Isso aumenta consideravelmente o risco de problemas de saúde. Depois do trauma, as pessoas podem desenvolver depressão, doenças cardíacas, problemas gastrointestinais, problemas de pele e doenças autoimunes, como lúpus. Nós sabemos que mais da metade de todas as queixas que vão para médicos que não são psiquiatras, têm origem na saúde mental. E a maior parte do que vem da saúde mental, vem do trauma”, afirma Conti, que é graduado em medicina pela Universidade Stanford e especialista em psiquiatria pela Stanford e Harvard, onde foi nomeado chefe dos residentes.

Na visão do especialista, o trauma pode ser considerado uma epidemia porque “passa adiante”.

“Pessoas que sofrem traumas violentos, como abuso físico, emocional, verbal ou sexual, têm uma probabilidade maior de repetir esse comportamento com outras pessoas. Isso não é uma regra, mas o risco é maior. Então elas se tornam pais que têm maior probabilidade de abusar dos seus filhos. Ou, elas podem ir para o outro extremo e se tornarem superprotetivas, o que causa outros problemas para as crianças”.

Segundo Conti, um trauma na infância pode afetar as crianças pelo resto de suas vidas, inclusive causando impacto entre as gerações.

“A ciência já mostrou que grandes traumas podem impactar a expressão dos genes em crianças que ainda vão nascer. Isso mostra que o trauma tem um alcance muito grande nos seres humanos”.

De acordo com o psiquiatra, os sintomas variam de pessoa para pessoa, mas uma das marcas registradas depois de um grande trauma que altera o cérebro é a repetição da experiência.

“A pessoa pode ter pensamentos intrusivos e continua assombrada pelo que aconteceu. Por exemplo, se houve um acidente de carro, elas podem ter visões muito vívidas do carro vindo em sua direção ou do momento do impacto. Mas também podem ser outras coisas. Por exemplo, uma pessoa que sofreu bullying por anos pode achar que constantemente está sendo perseguida ou pode se lembrar do rosto de uma pessoa de forma recorrente. Há ainda o que é chamado de hipervigilância. Uma pessoa que não é traumatizada, tende a olhar para uma pessoa nova com uma certa curiosidade, enquanto uma pessoa traumatizada pode enxergar uma ameaça. Isso tudo também tende a aumentar o nível de ansiedade. Há muita tensão. O humor em geral fica deprimido. Há alterações no sono, como dormir pouco ou não ter um sono restaurador. Pode haver alteração na saúde física. O comportamento também pode mudar. As pessoas podem se tornar evasivas. Então é aquela pessoa que saía com os amigos e namorava, mas agora prefere ficar sozinha em casa. Ou aquele outra que gostava de correr, mas agora prefere beber”.

Ele explica que um médico deveria ser como um repórter, fazendo perguntas que cheguem à raiz do problema, “mas nossos sistemas de saúde não fazem isso”.

“Geralmente, se você procura um médico e diz que não está se sentindo bem, que se sentiu deprimido no último ano ou que não está dormindo bem, que de repente não se sente tão bem e começou a ter erupções cutânea, ele apenas vai te dar um remédio para depressão e outro para a pele. Ou seja, ele vai tratar o sintoma, mas não vai até a raiz do problema. Ele não vai perguntar por que você está assim? O que mudou em você? Quando você faz essas perguntas a outras pessoas ou a si mesmo, você descobre. Às vezes precisamos de um médico ou terapeuta para nos fazer essas perguntas, outras, podemos fazer essas perguntas a nós mesmo ou a um amigo. E é assim que você aprende. Frequentemente, tudo o que você precisa é começar a fazer algumas perguntas para entender o que aconteceu que causou aquela mudança. E ao invés de tentar tratar os sintomas, é preciso falar sobre aquela coisa que aconteceu e que te deixou diferente, para que possamos ajudá-lo a se curar novamente, em vez de apenas polir o capô e dizer ‘vá em frente’.”

“Na maioria dos casos de depressão, abuso de drogas ou álcool e ataques de pânico, há um trauma por trás”, completa.

Conti diz ainda que o trauma tem cura e que os medicamentos ajudam com os sintomas, mas o tratamento não pode ser resumido aos fármacos:

“A forma como o trauma é trabalhando na terapia é falando sobre o que aconteceu e como a pessoa se sentiu com aquilo. Na maioria das vezes, a pessoa se fecha depois de um trauma. Ela se sente culpa, envergonhada e não fala daquilo com outras pessoas”.

Questionado se é possível reverter as alterações físicas e mentais causadas pelo trauma, o psiquiatra afirma que sim. “Isso é o que é incrível. Se considerarmos que metade dos problemas físicos relatados aos médicos é psiquiátrico e que a maior parte dos problemas psiquiátricos é causada por um trauma, está claro que ao tratar o trauma, as pessoas melhoram. Nós vemos isso na prática”.

“Se você vier até mim e eu apenas prescrever alguns medicamentos, eu não vou te ajudar a melhorar. Mas se eu parar para perguntar como você está e entender o que está acontecendo, não é surpreendente que você vai melhorar”, afirma o especialista.

F5 Online com informações do jornal O Globo