SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A imprensa era o alvo principal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando ele se levantou para discursar no palco do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no último dia 31, num evento organizado pelo PT para marcar os cinco anos do impeachment de sua sucessora, Dilma Rousseff.
O líder petista começou reclamando da ausência de emissoras de televisão no local, mencionou as críticas que lhe fazem quando fala em regulamentar os meios de comunicação e por fim queixou-se do tratamento recebido de jornais, revistas e TVs quando a Operação Lava Jato estava no seu encalço.
Citando um novo livro lançado pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, Lula mostrou contrariedade. “Aqui não tem um capítulo do papel da imprensa no golpe”, observou, referindo-se ao impeachment de Dilma. “A gente está coagido a não mexer com a imprensa. É melhor apanhar e ficar quieto.”
A um ano da eleição presidencial e apontado pelas pesquisas como favorito para vencer a corrida, Lula decidiu reabrir o debate sobre um dos assuntos que mais geraram controvérsia nos 13 anos em que o PT governou o país, a criação de um novo marco regulatório para os meios de comunicação.
Embora ninguém no partido discorde dele sobre a necessidade de modernizar a legislação do setor, a iniciativa de Lula causou desconforto em muitos petistas, que temem dar munição para os críticos do PT num momento em que Lula busca alianças para disputar a sucessão de Jair Bolsonaro.
“Foi inoportuno, porque ainda não há debate consolidado sobre o tema no partido”, diz o deputado estadual José Américo Dias (SP), que foi secretário nacional de comunicação do PT. “Lula deveria se preservar para atuar como uma espécie de árbitro quando essa discussão estiver mais madura.”
O ex-presidente relançou o debate durante a viagem que fez pelo Nordeste no fim de agosto. O tema surgiu primeiro quando um representante de uma rádio comunitária do Maranhão o questionou numa entrevista coletiva. Nos dias seguintes, o próprio Lula tomou a iniciativa de voltar ao assunto.
Nessas ocasiões, o líder petista articulou um discurso confuso, associando suas críticas à imprensa a outras questões, como a concentração de grupos econômicos no setor de radiodifusão, a desinformação nas redes sociais e os critérios do governo para distribuição de verbas de publicidade oficial.
Numa entrevista em Salvador, por exemplo, ele descartou modelos de países governados por regimes autoritários, disse ser contra qualquer tipo de censura e defendeu assim a adoção de limites para as emissoras de televisão: “Tem que ter um limite. As pessoas não podem tudo do jeito que podem”.
Lula apontou até aqui duas referências para a discussão: a legislação do Reino Unido, que prevê restrições à concentração econômica e mecanismos para garantir equilíbrio na cobertura jornalística, e um projeto de lei elaborado no fim de seu governo para mudar as regras da radiodifusão.
Preparado pelo então ministro Franklin Martins, que chefiava a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o projeto aproveitou sugestões recebidas de especialistas, empresas do setor e representantes da sociedade que participaram da Conferência Nacional de Comunicação, em 2009.
Franklin entregou o texto a Dilma no fim de 2010, um dia antes de sua posse como presidente. A expectativa era que a proposta fosse submetida a consulta pública e depois encaminhada ao Congresso, mas isso jamais aconteceu. O governo engavetou o projeto e nunca divulgou seu conteúdo.
O documento só veio a público no ano passado, como apêndice de uma tese de doutorado defendida pelo jornalista Camilo Vannucchi na Universidade de São Paulo. Franklin forneceu uma cópia do texto a Vannucchi, mas somente depois que o pesquisador obteve autorização de Dilma para divulgá-lo.
O projeto criava uma Agência Nacional de Comunicação para regular as concessões de rádio e televisão, mas não tocava na concentração do mercado e evitava questões que Lula tem mencionado, como a propriedade cruzada de diferentes meios de comunicação pelos mesmos grupos econômicos.
O texto mantinha limites da legislação vigente e garantias que protegem as empresas, como a exigência de quórum elevado no Congresso para revogar concessões. Além disso, proibia políticos com mandato de controlar meios de comunicação, restrição hoje imposta só a deputados federais e senadores.
Com 297 artigos, o projeto estabelecia cotas mínimas para estimular produções independentes e regionais, proibia o aluguel de horários na grade das emissoras de televisão e recomendava que todas respeitassem princípios como imparcialidade, equilíbrio e pluralismo em sua programação jornalística.
“O projeto era um bom ponto de partida e era muito comportado, sem nada que pudesse criar constrangimento”, diz o professor Murilo César Ramos, da Universidade de Brasília. “É bom que Lula volte a tocar nessa questão, mas será difícil insistir no assunto sem explicar por que nada foi feito antes”.
Na viagem ao Nordeste, Lula afirmou em duas ocasiões não saber por que sua proposta não avançou no governo Dilma. “Não vou discutir por que não deram entrada [no Congresso]”, afirmou em Natal. Questionada pela reportagem, sua assessoria informou que ele não se manifestaria sobre o assunto.
Em nota, Dilma afirmou que sua prioridade no primeiro mandato foi a discussão do Marco Civil da Internet, aprovado pelo Congresso em 2014, e que o debate sobre regulação dos meios de comunicação tornou-se inviável depois, por causa da crise política que levou ao impeachment, em 2016.
Durante os dois governos de Lula, houve várias tentativas de regular os meios de comunicação, mas a maioria não avançou. O petista chegou a propor a criação de um conselho para fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, mas desistiu depois que a proposta foi rechaçada pelo Congresso.
Entre especialistas que participam de discussões sobre o assunto no PT, há consenso de que o projeto de Franklin Martins tornou-se obsoleto, superado pelas transformações causadas na última década pelo avanço das redes sociais e dos serviços de transmissão de filmes e séries de TV na internet.
“É necessário levantar o embargo que até hoje impediu o debate sobre a modernização do marco regulatório dos meios de comunicação”, diz João Brant, ex-secretário do Ministério da Cultura e coordenador da discussão sobre o tema na campanha presidencial de Fernando Haddad (PT) em 2018.
Em artigo publicado por uma revista da Fundação Perseu Abramo há uma semana, Brant sugeriu que sejam incluídas entre as prioridades para a discussão o combate à desinformação na internet, as políticas das plataformas que administram as redes sociais e a tributação das empresas do ramo.
Em outro texto, publicado no jornal Folha de S.Paulo, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), defendeu os princípios estabelecidos pela Constituição de 1988 para concessões de rádio e televisão, alguns dos quais nunca regulamentados, e sugeriu mudanças na legislação que garante o direito de resposta, sem dar detalhes.
Os petistas só deverão tratar do assunto com maior profundidade quando começarem a discutir o programa que Lula apresentará em sua campanha presidencial em 2022. “Não é prioridade nesse momento, e o próprio Lula sabe disso”, diz o secretário nacional de comunicação do PT, Jilmar Tatto.
OS GOVERNOS DO PT E A REGULAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Conselho Federal de Jornalismo Em 2004, o governo Lula propôs ao Congresso a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, com poderes para regulamentar e fiscalizar o exercício da profissão. Elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas, o projeto foi rejeitado pela Câmara dos Deputados quatro meses depois.
Ancinav No mesmo ano, o Ministério da Cultura colocou em debate um projeto de Lei Geral do Audiovisual. Criava a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual e regras para produção de filmes, programas de TV e operadoras de telecomunicações. O projeto nunca foi submetido ao Congresso e foi engavetado.
EBC Em 2008, o Congresso aprovou a criação da Empresa Brasil de Comunicação, responsável pela TV Brasil, pela Agência Brasil e por sete rádios estatais. A ambição de criar um forte sistema público de comunicação foi frustrada com o tempo por cortes orçamentários e baixíssimos índices de audiência.
Projeto de Franklin Martins Produzido pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República sob a liderança do então ministro Franklin Martins, o projeto incorporou sugestões da Conferência Nacional de Comunicação, realizada em 2009. Criava uma Agência Nacional de Comunicação e propunha novas regras para emissoras de rádio e televisão. Entregue em 2010 à presidente eleita Dilma Rousseff, foi engavetado em seu governo.
Marco Civil da Internet Aprovado pelo Congresso em 2014, com base num projeto de lei apresentado por Dilma após sete anos de discussão com a sociedade, criou garantias para usuários da rede e regras para empresas que prestam serviços na internet, buscando proteger a liberdade de expressão, a privacidade e o princípio da neutralidade da rede.